COMO SE COME UM GORAZ (Oitava década do século XX)
Ainda que tenha forma de peixe,
e se coma à mesa, de garfo e faca e conforto,
mesmo assim indefeso, objecto consumível,
o goraz é mais que o peixe morto
que sobra ou não, conforme for
menos ou mais apetecível.
- Aquilo que te pedimos - e não dás,
aquilo que te pedimos - e nos dás.
estão os temperos, o mais que for preciso,
mas sobretudo os gestos que dele fazem
um produto acabado, pronto a ser comido,
mas sobretudo a vontade de dizeres:
Faço-vos o goraz. Aquilo em que pensaste
ao transformares matéria prima em alegria.
E convém não esquecer a força de trabalho:
Do processo de produção faz parte a simpatia,
o carinho posto em cada peça que juntaste,
o amor escondido num simples dente de alho.
(Perdoa-me o marxismo-leninismo,
heróica militante da cozinha!)
cada vez mais algo de ti que tu nos dás.
o mais recente país da tua criação,
olhar-nos-ias sorridente, e por certo nos darias
algo assim como um prémio
de consolação.
materialíssimo goraz. E ao comê-lo,
em cada pedaço que passa a ser-nos corpo
entra em nós algo de ti, dos gestos, das ideias,
das mãos com que, solene, o cozinhaste.
Sabê-lo
É saber que nós somos os outros,
que a química em ti, por interposto goraz, agora
é também a que, por exemplo, nos comove.
E olha: deixa que os gulosos de sempre comam mais...
Tudo isto te é, creio, familiar.
Vês? Um goraz nem sempre é um goraz:
Pode ser estrela, arco-íris ou país,
e pode mesmo ser mais eficaz.
É preciso, pois, merecer o teu sorriso,
devolver-te em pedaços de nós o que nos deste,
que a corrente dos corpos tem sempre dois sentidos,
e tu ganhaste o mar, a música e a cor.
Por isso, só por isso, deve o goraz ser comido
com garfo e faca, com vinho
e com amor.
SIGAMOS O GORAZ (Primeira década do século XXI)
Durasse tantos anos ou tão poucos.
Fomos tolos e agora
Somos loucos?
O tempero ganhou em qualidade,
Parece o vinho de que canta a lenda.
Já lá vão vinte e três,
Sem emenda!
A arte é dom de quem lhe espeta a faca,
O peixe é rei de quem lhe mete o dente:
Cuidado com o prato
Que está quente...
Quem quiser seguir o cherne, faz favor,
Mas não lhe invejo a sorte. Sou capaz
De apostar no cavalo
Do goraz.
Em que assados o assado nos meteu
Só nós dois é que sabemos afinal.
Siga a marinha que ainda,
Por sinal,
Enverga farda de gala e coisa e tanto,
Que os anos pesam a quem só se atrasar
E a música e a neve
E o luar
Acompanham as caras com que rimos,
Apimentam iguarias inesperadas.
Ah goraz d’um carago,
Já marchavas!
Tudo isto é de um requinte absoluto,
De uma lei, mais que justificada, justa.
E às vezes, é verdade,
Também custa...
Isso que importa, se ao virar a esquina
Aparecem o rapaz e a menina?
E depois, surpresa das surpresas,
Para nossa inenarrável confusão,
O goraz ultrapassa
O camarão!
Porque, sabes, o camarão é simples:
Mais alho ou menos sal, frito ou grelhado,
Não encara o goraz,
Olha-o de lado...
Enquanto o peixe assado armadilha
Anos de culinária abandalhada,
Transforma em linhas garfos,
Abre a estrada,
Escroques croquetes, risonhos rissóis,
Pastéis palacianos, fios de ovos
Rebentam por ficarem
Como novos.
Mas dá-me vinho branco e aquelas coisas
Que ainda não me entraram no radar,
Vamos a ele, que é tempo
De explorar
Vinte e três anos e por isso apenas
Não me calava nem à lei da bala.
Mas quanto mais se escreve,
Mais se cala...
Devia assim mostrar a folha em branco,
P´ra te dar chances de interpretação.
Mas entretanto aprendi
A lição:
Há que ser sempre in finis positivo,
Há que ter sempre corda e ameaças,
Senão de que valiam
As cenaças?
Há quem invoque os deuses e os diabos,
Há quem aroma(n)tize à boticário.
Não farei nada disso,
P’lo contrário,
Quero uma data simbólica e real,
Quero um dia sem espinhas nem surpresa,
Além da que é forçoso
Pôr na mesa,
Com cuidado, que a porcelana é nova
E há muito campeonato p’ra jogar.
Por isso ainda podemos
Divagar
Devagar.
Refilar,
Regritar,
Penetrar
No lugar
Onde se diz, onde se vê, onde se faz,
“Com garfo e faca, com vinho e com amor”
O famoso goraz.
26 comentários:
Alien,
Que memória extraordinária tu foste trazer:)))
A casa cheia dos gulosos do costume, os risos e a música inesquecível:)))
E o tempo que nós vamos ignorando, os mesmos olhos e o poema revisitado.
E, em tempo de memórias, um beijo grande da tua "amiga vestida de ternura"
nunca pensei que um goraz desse tanto pra aescrever! Muito bem!
beijos
Alien,
E obrigada pelas flores.
Beijos
Caramba! Fiquei com olhos de goraz de tão esbugalhados!... Isto não é um simples poema, é uma ode, quase epopeia, se tivesse mais uns Cantos. Magnífica e sonorosa e suculenta. Não fosse a sombra da greve dos pescadores, este seria um momento de pura felicidade!:)
Vasi!
Parabéns duas vezes, uma pelo aniver~sário e outra pelos poemas que estão geniais:)
Beijos
A 29 de Maio fazia anos a minha avó querida e a minha sobrinha mais novinha 5 anos. Também é um dia de celebração.
Já estou como a Wind. Parabéns duas vezes e pelso mesmos motivos
um beijinho
Lola,
Obrigado por gostares, por te lembrares, pelo beijo...
E um beijo.
Teresa,
Depende do goraz... e mais de quem o faz :))
Obrigado.
Beijos e até breve.
Nnannarella,
Epopeia??? Ah ah ah ah ah! Sais-te com cada uma! :)
Na realidade, são apenas dois poemas, separados por alguns anitos...
Fico feliz por ters gostado (apesar da greve, pois...:)
Vasi!
Wind,
Obrigado, amiga.
Um beijinho e até breve.
Gi,
Obrigado. Como para ti também é uma data de celebração, deixo-te também os parabéns. A tua sobrinha mais nova tem 5 anos?
Um beijinho.
Alien, viesse eu mais cedo e ficaria com água na boca :)
Assim, depois de uma farta e bem acompanhada sardinhada, deixo eu tb os meus parabens à cozinheira de mão cheia e coração sucolento :) e um obrigada a ti por nos ofereceres tão bem descrito goraz!!!...e ao que parece:) 23 anos de vida! Porque um goraz não é e nunca será apenas um goraz :)
Beijo de bom domingo e de boa semana!
errata :(suculenta)
Opssss
errata da errata: (suculento)
opsss opssss
:-D
Marginal,
Ena, ena, três comentários de uma assentada! :)
E quem serás tu, quem????
OK, não serei eu quem me descosa :))
Só agradeço o que escreveste, os parabéns e tudo o mais. E sim, eram 23 aninhos em comum ao tempo do segundo goraz...
Boa semana e um beijo!
que bom, um goraz... com flores e poemas, que requinte!
beijo
Olá, e-ko!
Obrigado e até breve.
Um beijo.
Deixo aqui um café e um sorriso :)
à margem de tudo o mais :)
Marginal,
E eu devolvo-te o sorriso e agradeço o café, que estava óptimo!
À "Margem de Certa Maneira" hehehe!
Beijos.
Olá caro amigo Alien,
não encontrando um dos habituais posts sobre culinária deixo mesmo aqui o link para a Casa de Chá da Rita e sua irmã: O Chá da Barra em Oeiras (http://chadabarra.blogspot.com/)
Acredito que despertará muitos desejos com as doçuras lá descritas.
Abraço
Tiago
Olá Tiago,
Muito obrigado pela visita e pelo link. Em breve lá irei!
Um abraço.
Alien,
Ainda que só cá pudesse voltar para o ano não deixaria de comentar esta lindíssima dedicatória. Primeiro, porque embora não a tenha comentado pude lê-la no dia em foi publicada e fiquei com ela na memória e depois, porque nunca tinha visto uma forma de comemorar este tipo de datas com um cardápio tão sumptuoso e tão original.
Muitos parabéns a ambos!
Graça B.,
Só me ocorre dizer-te obrigado! :)
Que lindíssimo! Ah...os "gémeos" que tão imaginativos são... até um simples peixe se transforma numa passarola voadora! Achei ternura à solta e tudo o que é de comemorar me adoça a alma.
Bjs de Parabéns, mesmo só "adivinhando". Mas a mim apraz-me a felicidade de amigos...
Bettips,
"Gémeos" que, por acaso, são "Peixes" :)))
Adivinhaste muito bem, e agradeço, agradecemos, os teus parabéns e as tuas bem felizes palavras.
Boa semana!
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