CAFÉ TROPICAL
Logo pela manhã, já havia quem aparecesse para o pequeno-almoço e uma sessão de livralhada. Mais tarde, a sagrada hora da bica, a conversa em dia, o namoro. Claro que havia mesas ocupadas só por uma pessoa, ou por três ou quatro, mas era raro. Como disse, o Café Tropical fazia-se a dois. Meia de estudo, meia de conversa, galões e tostas mistas, e assim escorria a tarde e se despovoava temporariamente o café.
A alma do Tropical era o Sr. Mário, um empregado de mesa baixinho e de cabelo muito preto, do qual o Zé Manel dizia, com certeira crueldade, que tinha um tamanho de pé igual à distância que ia do dito pé ao joelho. O Sr. Mário, omnipresente, solícito, amável, talvez mesmo em demasia, com o tempo já conhecia as preferências de cada cliente, de modo que os comes e os bebes pareciam materializar-se nas mesas, como que por milagre, ainda antes de serem pedidos. De mesa em mesa, eclipsava completamente o vago casal de donos plantado atrás do balcão, ainda que este se situasse uns dois ou três degraus acima do plano onde repousavam as mesas. Um dia alguém descobriu que o Sr. Mário jogava futebol de salão. Inimaginável! Parece que era guarda-redes, e é tudo o que posso adiantar, já que nem sequer faço ideia de quem e como descobriu o segredo.
Sento-me numa noite de Verão na pequena esplanada, a mesa preenchida sobretudo por imperiais e garrafas de cola vazias, porque o Coutinho dissera adeus à cerveja e às outras bebidas alcoólicas, mas acompanhava garbosamente os bebedores atacando cola atrás de cola. O Coutinho mais velho, que parecia ter surgido do nada na esplanada do Tropical e era, evidentemente, irmão do Coutinho mais novo, um anarca que conseguia escandalizar até os menos impressionáveis, como quando interrompeu um discurso solene numa Assembleia, pouco depois do 25 de Abril. Dizia o orador que o país estava em festa, que a Assembleia estava em festa, e o Coutinho mais novo dispara:
- Então, Sr. Presidente, estamos em festa... e não se fode???
Era meio maluco, o Coutinho mais novo. Ou parecia.
Tanto cá fora como lá dentro, as mesas eram quase sempre ocupadas pelas mesmas pessoas. Uma espécie de lugares cativos, embora às mesas da esplanada abancassem grupos maiores, que era preciso fazer render o espaço. Ali mesmo ao lado da esplanada do Piolho, onde também havia habitués, tudo isto sem grande necessidade daquilo a que, anos mais tarde, se chamaria fidelizar a clientela...
Apareciam panfletos nas mesas. Comunicados e tarjetas, que não se sabia de onde vinham, mas surgiam sempre. E também se cozinhavam lá bastantes. Por isso, regularmente, o café recebia a visita de agentes e informadores da PIDE, que era suposto passarem despercebidos, mas que todos reconhecíamos, notas fortemente dissonantes naquele ambiente quase familiar. Por essas e por outras, nem todas as noites de Verão eram calmamente passadas na esplanada do Tropical. Como aquela em que fomos a uma manif contra a guerra colonial, lá para os lados do bairro do Marechal, “Abaixo a guerra colonial, abaixo a guerra colonial!”, e vem de lá o corpo de intervenção e começa a exercer a sua função de malhar a eito, e a manif dispersa para se reorganizar um pouco mais tarde e mais adiante, em correria encabeçada por um rapaz de bóina à Che Guevara, com estrela vermelha e tudo, que quanto mais fugia, mais gritava: “Recuar é ceder, recuar é ceder!”
De bóina também entrou o Colega Bento na aula de um catedrático de extrema-direita que “as massas” decidiram boicotar. Muitas vezes subimos o passeio em frente à Associação, em amena conversa, o Colega Bento e eu. Mas, naquela manhã, ao lente não lhe terá caído bem a bóina invasora, e assim começou a invectivar o prevaricador:
- Ó meu amigo Che Guevara! ...
Não teve tempo para mais, que logo o Colega Bento lhe atirou:
- Che Guevara fosse eu, que você já não estava aqui a dar aula nenhuma!
Foi expulso da faculdade, o Colega Bento. Pois. Fora da faculdade também andou o Veiga, que um belo dia apareceu no tribunal para assistir ao julgamento de meia dúzia de manifestantes apanhados à má fila vestindo, ele Veiga, blusão e calças Levi’s vermelho vivo, complementando a fatiota com óculos escuros e... bengala!
- Ó Veiga, mas que vestimenta é essa???
- Pá, a PIDE anda atrás de mim, isto é um disfarce, que te parece?
Pareceu-me que, minutos depois, um pide se chegou ao Veiga e, com um risinho trocista:
- Então, Sr. Veiga, por aqui?
“Audácia, meus senhores, sempre audácia!” – era o lema do Veiga. De facto...
O juiz que presidia a esse julgamento era já velhote e comia uma papa qualquer durante as audiências, para gáudio do público. Às tantas só deixavam entrar estudantes de Direito, e nunca se viram tantos cartões da respectiva faculdade na mão de tanta gente, passados de dentro da sala de audiências para fora numa espécie de multiplicação divina. Dizia um advogado de defesa: “Com este juiz tem que ser assim, vénia para a direita, vénia para a esquerda, coice para ambos os lados!” Também bebia uns copitos, o advogado, mas nunca perdia o norte, apesar de chamar sistematicamente chefe ao subchefe da PSP que lá estava a fazer número de testemunha de acusação.
- Chefe não, Sr. Dr., Subchefe...
- Sr. Chefe, eu sei porque o trato assim, e o senhor Chefe também...
Soube mais tarde que o Chefe tinha sido despromovido por se espetar ao volante de um 115, de modo que o advogado de defesa lá tinha, de facto, as suas razões...
Passados largos anos, voltei ao Tropical, e quem haveria de me atender? O Sr. Mário, evidentemente. Também ele parecia suspenso no tempo e no espaço, sem sinais de envelhecimento, o cabelo sempre muito preto - quem sabe se o pintava? Para meu espanto, chamou-me pelo nome. Tratou-me como se ainda ali tivesse estado no dia anterior. E foi exactamente o que me pareceu.
37 comentários:
"vertiginosa" a tua prosa. das memórias.
que o tempo re.adoça.
algumas.~~~
beijo A. de um sempre. sempre.
"vertiginosa" a tua prosa. das memórias.
que o tempo re.adoça.
algumas.~~~
beijo A. de um sempre. sempre.
lha...duplicou.mas não me apetece apagar....:)))))
mas claro que Tu o podes fazer....
como é óbvio...dois pianos a tocar o mesmo....que maçada.
_______________________
_______________________!
Isabel,
Não apago nada :)))
Duplicou, deixa duplicar. Fica como está e pronto. Uma vertigem :))
Um beijo.
As tuas prosas/histórias são deliciosas, porque cruzas personagens, sem perderes "o norte":)
Extremamente bem descrito lugares e caracterização das pessoas:)
Parabéns e continua a escrever mais quando puderes;)
beijos
Magnífico, Alien.
Texto encantatório.
Abraços,
Gostei de ler :)
Bjs
Wind,
Obrigado!
Continuarei, conforme possa :)
Um beijo.
Pinto Ribeiro,
Obrigado!
Um abraço.
Mar,
E eu gostei de que gostasses de ler :)
uM BEIJO.
Embora sem qualquer jeito para a escrita e talvez daí, talvez, a minha falta de gosto para a mesma, só te digo que determinados textos me desempenam de tal forma os ferrinhos do meu baú das memórias que, me sinto com vontade de percorrer os dedos pelo teclado e sacudir o pó aos momentos que fui guardando. Esta é uma dessas histórias. Deliciosa e rica para quem não viveu desta forma estes momentos . Estas estórias que fazem parte da nossa história
beijinhos
ehehhhehehe...Alien. São mesmo memórias. E neste caso, de certa forma, minhas, também. :)
Bom dia!!!, abraço,
Olá
gostei imenso destas memórias! Para quem não as tem deste género ainda mais curioso é!
beijos
Alien caro amigo,
beeeemmmmm......que cápsula do tempo mais espectacular!!!
Sao esses momentos que nos preenchem!!
:)
Um besso lindão.....e que a blogosfera seja tambem ela uma (nossa) cápsula do tempo, para quando formos bem velhinhos podermos sorrir e falar sobre isto!
Recordar é VIVER.
Adorei este momento de prosa.
Um beijo
ora aí está, mais umas memórias
que me agradam sempre ler, tens mesmo queda para a escrita e tens aqui sempre uma leitora assídua.
beijocas grandes para ti, Flora e filhotes
Abraços,
Belo o texto.
As memórias do Café Tropical, são de um tempo em que só te conhecia de ouvir falar (o Ricardo) no M.... des chaises...
Mais tarde, noutra cidade e noutro café, conhecemo-nos (de novo o Ricardo)...
Estas memórias levam-nos longe...
Já não podemos marcar encontro no Imperial.
Beijos de uma jovem M para um velho A, cada vez mais novo
Lola
Gi,
Fico contente por o meu texto te dar vontade de percorrer o teclado com os dedos. Avança, portanto :)
Obrigado pelas tuas palavras sobre estas coisas que fazem, de facto e de algum modo, parte da nossa história.
Rosalina,
Tuas? Conta, conta :)))
Pinto Ribeiro,
Óptimo teres gostado.
Um abraço.
Teresa,
Curioso, hein? Hehehehe!
Fico feliz por teres gostado de mais esta historieta. Há mais na forja, e até já prontas...
Um beijo.
Capricórnia,
Cápsula do tempo, é isso mesmo :)))
Se gostaste, melhor ainda!
E sim, havemos de falar sobre isto, estes e outros momentos da vida que nos marcaram.
Um beijo.
Mariatuché,
Obrigado, amiga!
Um grande beijo.
Guida,
Eu tinha prometido, mana :)))
Quanto à queda, enfim, que não me cause grandes danos :)))
Beijinhos de todos para vocês todos.
Pinto Ribeiro,
Mais um abraço!
Lola,
É verdade, o Imperial já era, como referi de passagem num outro texto que já por aqui andou - e ainda anda :)
Quantos Imperiais já se foram! E quantas "chaises", caramba! E tinha que ser, conhecermo-nos num café... e nos arredores, e um pouco mais acima:)
Onde tudo isso já vai, como diria o Capitão Cap...
O A. retribui os beijos aí à jovenzita, e agradece o qualificativo do texto. Belo é belo, c'os diabos! :)))
Um bom fim de semana e um abraço.
Migo lindo...
claro que so te poderia entregar o award de 7 maravilhas da blogosfera!!!
Vai la recolher!!!
Bessos babados de te ler!
:)
Um bom fim de semana Alien.
Capricórnia,
Numa palavra: OBRIGADO!
Um beijo.
OPintas/Bernardo Kolbl,
Agradeço e retribuo os votos de bom fim de semana.
Um abraço.
SóniaR.,
Obrigado. Um bom fim de semana para ti - e para o PR, que ainda não apareceu, mas há-de aparecer :)
Um abraço.
Adorei o texto Alien
Lindo ver a cumplicidade que aqui vejo em cima....o que significa que as memórias são sempre momentos especiais...mais ainda quando perduram no tempo…:)
Grande abraço meu caro Amigo
Bom fim de semana
Já agora, então e as receitas?
Olha, estou agora a chegar. Fui jantar e levaram-me a comer uma feijoada de Marisco...ai meu amigo, nem te conto o bom que estava...estou aqui que pareço um abade...não cabe nem mais um feijão...comi, repeti, voltei e repetir...e ainda repeti.... :)))
Abraço
Caro Parrot,
Teres gostado do texto deixa-me feliz, evidentemente. E tens toda a razão quanto à cumplicidade e à ... "persistência da memória" :))
A tua feijoada de marisco, por outro lado, deixou-me de água na boca, como não podia deixar de ser. Logo agora que o meu estômago se anda a portar um bocado mal! Talvez por isso tenha esquecido temporariamente as receitas, mas elas voltarão, elas voltarão!
Bom fim de semana e um grande abraço para ti.
Postar um comentário