Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

19 de nov. de 2007

Luz

Deixemos entrar a luz. Bocados de luz
que nos passam nas mãos, flutuam, enchem,
penetram, oscilam, sonham mesmo despertar
o deserto dos verbos. Películas de luz, lâminas
de puríssimo som que nos ficam nos olhos,
deles lentamente se apoderam, concretos blocos
de luz, como tijolos ou pedras de inacessível
transparência que

cada vez mais alto
nos falam
sem
nunca ultrapassarem a
maravilha do murmúrio.

A luz de um certo branco que fere, e no entanto.
A luz pálida mas forte, tantas vezes tímida
(ou nós).

Deixemos entrar a luz que nos deseja o corpo,
a luz espalhada à superfície da água, brilhante,
difusa, a luz de um solitário candeeiro aceso no
polo da insónia, a luz negra das palavras que das
páginas nos acariciam, nos sorriem,
a luz subtil do cubo de gelo no meio do álcool,
no fundo do copo, luz fria, de refrescante tacto,
a luz que se adivinha do outro lado da colina.

Tocamos a luz
com sede, uma
muito nítida sede,

tocamos a luz
com a secreta avidez
dos nervos.

Deixemos entrar a luz do anoitecer, a luz
distante, fugitiva, que transforma as casas,
como se as víssemos sempre pela primeira vez,
a luz longínqua dos barcos que atravessam a noite,
impossíveis navios em que viajamos, submersa
no ruído profundo dos oceanos, no confuso movimento
de todos os portos.

Fatias de luz que desesperados mordemos, que nos deixam
na boca uma espécie de espuma, uma aurora de sangue,
retalhos de luz que nos envolvem os membros,
nos amarram, delicadamente nos surpreendem, correntes
de luz.

Interroguemos a luz.
Interroguemo-nos.