Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

27 de mar. de 2008

A Mancha Azul (outra versão)



A mancha azul



Altamiro olhou-se ao espelho, confirmou o penteado e ajeitou o nó da gravata de seda cinza. Gostou do resto que viu: o fato escuro de bom corte, a camisa de alvura imaculada. Estava já a voltar-se quando reparou que algo não batia certo. Passeou o olhar pelo espelho, e por fim descobriu: uma pequeníssima mancha azul no limite direito do espelho, situada exactamente ao nível do quarto botão, a contar de cima, da camisa branca. Altamiro desviou o olhar para a camisa e observou-a com atenção. Não viu mancha nenhuma. Considerou de novo o espelho, afastando-se ligeiramente para a direita. A mancha continuava no mesmo sítio, mas parecia-lhe agora um minúsculo sorrizo azul. Disfarçado de mancha. Já um tanto irritado, recuou três passos e fitou o espelho. O sorriso lá estava. Girou cento e oitenta graus sobre o pé direito, fez uma pausa de três segundos e completou o círculo. Quando levantou os olhos, lá estava a mancha. No mesmo ponto rigoroso.

Iam sendo horas. Altamiro colocou a carteira e as chaves nos bolsos do costume e saíu. Desceu os dois lanços de escadas que o separavam da rua e percorreu distraído os cento e vinte metros até ao café. Como sempre, sentou-se ao balcão e pediu uma bica cheia. Enquanto a beberricava, arriscou uma olhadela furtiva ao espelho atrás do balcão. A mancha lá continuava. Azul. Voltou a fixar-se na camisa. Branca. Só branca. Pediu um copo de água e, quando o empregado o trouxe, perguntou-lhe se lhe notava algo estranho na camisa. Que não, respondeu o Lázaro.

Altamiro levantou-se e saíu. A paragem ficava quase em frente. Atravessou a rua mesmo a tempo de apanhar o quarenta e seis e sentou-se no primeiro lugar vago que se lhe deparou. Notou ao lado a presença de um companheiro de viagem habitual, com quem nunca falara. Provavelmente, era também uma pessoa reservada. Deixando-se embalar pelo movimento sincopado do autocarro, Altamiro recostou-se no assento e suspirou. Fechou os olhos e concentrou-se na escuridão, preparado para o trajecto até à baixa. Não excessivamente longo, aliás.

No escritório, o dia correu normalmente. Já perto da hora de saída, foi lavar as mãos e dar a penteadela do costume. E tudo voltou. No limite direito do espelho. Ao nível do quarto botão, a contar de cima, da camisa branca. Altamiro considerava a possibilidade de verificar a camisa quando viu entrar o Bráulio, da Contabilidade. Arriscou uma olhadela furtiva à camisa do colega, através do espelho. Era azul, a camisa. Altamiro desesperou. Ficou a olhar para dentro, e quando o outro já saía, ainda arriscou:

- Ó Bráulio...
- Sim?
Altamiro hesitou.
- Nada, não é nada. Deixa estar...

O colega desapareceu pela porta, com um sorriso que lhe pareceu de piedade. Ou talvez escarninho. Altamiro respirou fundo, esperou cinco segundos e seguiu-o, passou pela secretária, confirmando que deixara tudo em ordem para o dia seguinte, e correu pelas escadas abaixo, evitando o espelho do elevador. Lá fora chovia a cântaros, e foi um Altamiro bastante molhado que entrou no 46, agora em sentido inverso, rumo ao conforto da casa.

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Acordou no sofá da sala, banhado em suor e com a cabeça latejante de dor. O que primeiro viu foram os sapatos. Pretos, evidentemente. O olhar de Altamiro subiu lentamente pelas calças, pelo casaco, pela camisa branca... e foi aí que a mancha azul lhe veio à memória ainda enublada. Algo incomodado, demorou o olhar na camisa, mas da mancha nem sinal. Nada de que se admirar. Nunca estivera na camisa, recordou.

A dor de cabeça clamava insistentemente por café e aspirinas. Com alguma dificuldade, Altamiro levantou-se e quase cambaleou até à cozinha. A preparação do café era uma espécie de ritual feito de gestos maquinais, por isso não teve qualquer dificuldade em colocar a água na parte inferior da velha cafeteira italiana, depositar o pó de café no filtro na medida exacta, enroscar a cafeteira e colocá-la ao lume. Minutos depois, saboreava um café forte e generosamente açucarado, e o dia começava a desanuviar-se-lhe no cérebro. No pequeno visor iluminado do rádio-relógio colocado sobre o frigorífico leu distintamente MAY 26 SUN 17:28. Era, então, domingo?

Desenrolou-se-lhe naturalmente, como se fosse um filme a preto e branco, a memória da noite anterior, e Altamiro percebeu que dormira umas boas doze horas. E que sonhara. Começou então quase inconscientemente a separar o sonho da realidade, como quem separa as claras das gemas: Não os preparativos para o trabalho, mas o aprontar-se para uma saída nocturna; não o quarenta e seis para o escritório, mas o táxi para o restaurante; não a jornada de trabalho, mas a noitada nos bares; não o Bráulio da Contabilidade, mas os amigos dos copos; não o autocarro de regresso a casa, mas o carro de alguém que o trouxera e o deitara no sofá, presumivelmente por ter bebido demais. O Ezequiel, era isso, fora o Ezequiel que o trouxera a casa. Por isso adormecera no sofá, de fato e gravata e tudo. Altamiro apenas se permitia aquelas farras aos sábados à noite, o que lhe confirmou que, de facto, era domingo. Recordou depois a manhã do dia anterior, passada a dormir, a tarde a ver futebol na televisão... Precisamente! Nada de mancha azul, apenas um sonho, um estúpido pesadelo! Qual mancha azul sorridente, qual história! Por falar em história, até que era uma bem interessante para contar aos amigos no sábado seguinte.

Bebeu um longo gole de café, aliviou o nó da gravata e considerou que, realmente, dormira demais. Coisas da ressaca. Altamiro sorriu, mas a dor de cabeça continuava a pedir-lhe aspirina. Com a caneca na mão e um sorriso nos lábios, dirigiu-se à casa de banho. O sorriso foi-se-lhe abrindo cada vez mais, enquanto estendia a mão para a porta do armário onde guardava medicamentos, artigos de higiene e miudezas diversas.

Estranhamente, no rosto que a porta espelhada lhe devolveu não havia sorriso algum. Altamiro estremeceu, e o olhar desceu-lhe, lenta mas inexoravelmente, pela superfície do espelho, até encontrar uma pequeníssima mancha azul, no seu limite direito, exactamente ao nível do quarto botão, a contar de cima, da camisa branca.

A mão esquerda de Altamiro continuou a segurar a caneca de café, mas o punho direito saíu-lhe disparado, como se tivesse vontade própria, em direcção ao espelho, perfurando-o e fazendo saltar estilhaços e gotas de sangue em todas as direcções. Só parou quando encontrou o fundo do armário, onde se quedou prisioneiro da fúria e de cacos brilhantes. Enraivecido, Altamiro nem sentiu a dor. Os olhos procuraram-lhe instintivamente um certo fragmento do espelho. Estava intacto, e revelava-lhe agora uma série de manchas vermelhas, que começavam a escorrer pela alvura da camisa. No meio delas, exactamente ao nível do quarto botão, a contar de cima, da camisa que fora branca, a mancha azul permanecia, incólume e sorridente.

- Boa tarde, Altamiro! – disse a mancha azul.

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Leontino abriu os olhos, desligou o televisor com um gesto de enfado, acendeu um cigarro e estendeu a mão direita para o copo de uísque convenientemente colocado na mesinha de apoio ao sofá. Verificou que ainda tinha gelo suficiente. Essa agora! Um filme sobre um idiota com o estranho nome de Altamiro, que até metia manchas azuis que sorriam e falavam!? Ou ter-se-ia deixado vencer momentaneamente pelo sono, e sonhara tudo aquilo? Ou teria sonhado o filme? Fosse como fosse, não iria perder mais tempo com disparates! Sacudiu as dúvidas e a cinza do cigarro com o mesmo gesto decidido, bebeu um bom gole e encetou a agradável tarefa de escolher o restaurante onde jantaria nessa noite. Enquanto pesava prós e contras, no gostoso exercício de antecipar iguarias e vinhos de boas colheitas, ergueu o copo contra a lâmpada do candeeiro, deliciando-se, como sempre, com o pequeno e cintilante espectáculo dos cubos de gelo no meio do líquido dourado, num contra-luz esbatido pelo fumo do cigarro, que nunca se cansava de admirar. Pareceu-lhe notar, no meio de um dos cubos de gelo, um reflexo azulado. Sem pensar duas vezes, Leontino engoliu de um trago o resto da bebida, apagou o cigarro, levantou-se e caminhou apressadamente em direcção à casa de banho, a fim de dar os últimos retoques ao visual.