
O Tempo
Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso.
Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria.
Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas.
Sonhou os gregos que descobriram o diálogo e a dúvida.
Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal.
Sonhou a palavra, esse grosseiro e rígido símbolo.
Sonhou a sorte que tivemos ou que agora sonhamos ter tido...
Sonhou a primeira manhã de Ur.
Sonhou o misterioso amor da bússola.
Sonhou a proa do norueguês e a proa do português.
Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, aquele que morreu uma tarde numa cruz.
Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates.
Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho.
Sonhou o livro, esse espelho que nos revela sempre outro rosto...
Sonhou o espaço.
Sonhou a música, que pode prescindir do espaço.
Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável do que a música, porque inclui a música.
Sonhou uma quarta dimensão e a forma singular que a habita.
Sonhou o número da areia.
Sonhou os números transfinitos, a que não se chega contando.
Sonhou o primeiro que no trono ouviu o nome de Thor.
Sonhou os opostos rostos de Jano, que não se verão nunca.
Sonhou a lua e os dois homens que caminharam sobre a lua.
Sonhou o poço e o pêndulo.
Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinoza...
Sonhou o jasmim, que não pode saber que o sonham.
Sonhou as gerações das formigas e as gerações dos reis.
Sonhou a vasta teia que tecem todas as aranhas do mundo.
Sonhou o arado e o martelo, o caranguejo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrez.
Sonhou a enumeração a que os tratadistas chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos...
Sonhou que nas batalhas os tártaros cantavam.
Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que depressa será uma onda.
Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet.
Sonhou os arquétipos.
Sonhou que ao longo dos verões, ou num céu anterior aos verões, há uma única rosa...
Sonhou os rostos dos teus mortos, que agora são esmaecidas fotografias.
Sonhou a primeira manhã de Uxmal.
Sonhou o acto da sombra.
Sonhou as cem portas de Tebas.
Sonhou os passos do labirinto.
Sonhou o número secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha...
Sonhou a vida dos espelhos.
Sonhou os signos que o escriba sentado traçara.
Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas.
Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança.
Sonhou o deserto.
Sonhou a madrugada que espreita.
Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes de água.
Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido.
Sonhou Alexandre da Macedónia.
Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre.
Sonhou o mar e a lágrima.
Sonhou o cristal.
Sonhou que Alguém o sonha...