Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

13 de nov. de 2009

Para variar, e porque referi o autor, e porque talvez venha a propósito...

"Não é extraordinário pensar que dos três tempos em que dividimos o tempo - o passado, o presente e o futuro -, o mais difícil, o mais inapreensível, seja o presente? O presente é tão incompreensível como o ponto, pois, se o imaginarmos em extensão, não existe; temos que imaginar que o presente aparente viria a ser um pouco o passado e um pouco o futuro. Ou seja, sentimos a passagem do tempo. Quando me refiro à passagem do tempo, falo de uma coisa que todos nós sentimos. Se falo do presente, pelo contrário, estarei falando de uma entidade abstracta. O presente não é um dado imediato da consciência.
Sentimo-nos deslizar pelo tempo, isto é, podemos pensar que passamos do futuro para o passado, ou do passado para o futuro, mas não há um momento em que possamos dizer ao tempo: «Detém-te! És tão belo...!», como dizia Goethe. O presente não se detém. Não poderíamos imaginar um presente puro; seria nulo. O presente contém sempre uma partícula de passado e uma partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo."

Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Tempo'


O Tempo


Que terá sonhado o Tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice?

Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso.
Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria.
Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas.
Sonhou os gregos que descobriram o diálogo e a dúvida.
Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal.
Sonhou a palavra, esse grosseiro e rígido símbolo.
Sonhou a sorte que tivemos ou que agora sonhamos ter tido...

Sonhou a primeira manhã de Ur.
Sonhou o misterioso amor da bússola.
Sonhou a proa do norueguês e a proa do português.
Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, aquele que morreu uma tarde numa cruz.
Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates.
Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho.
Sonhou o livro, esse espelho que nos revela sempre outro rosto...

Sonhou o espaço.
Sonhou a música, que pode prescindir do espaço.
Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável do que a música, porque inclui a música.
Sonhou uma quarta dimensão e a forma singular que a habita.
Sonhou o número da areia.
Sonhou os números transfinitos, a que não se chega contando.
Sonhou o primeiro que no trono ouviu o nome de Thor.
Sonhou os opostos rostos de Jano, que não se verão nunca.
Sonhou a lua e os dois homens que caminharam sobre a lua.
Sonhou o poço e o pêndulo.
Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinoza...

Sonhou o jasmim, que não pode saber que o sonham.
Sonhou as gerações das formigas e as gerações dos reis.
Sonhou a vasta teia que tecem todas as aranhas do mundo.
Sonhou o arado e o martelo, o caranguejo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrez.
Sonhou a enumeração a que os tratadistas chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos...

Sonhou que nas batalhas os tártaros cantavam.
Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que depressa será uma onda.
Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet.
Sonhou os arquétipos.
Sonhou que ao longo dos verões, ou num céu anterior aos verões, há uma única rosa...

Sonhou os rostos dos teus mortos, que agora são esmaecidas fotografias.
Sonhou a primeira manhã de Uxmal.
Sonhou o acto da sombra.
Sonhou as cem portas de Tebas.
Sonhou os passos do labirinto.
Sonhou o número secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha...

Sonhou a vida dos espelhos.
Sonhou os signos que o escriba sentado traçara.
Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas.
Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança.
Sonhou o deserto.
Sonhou a madrugada que espreita.
Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes de água.
Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido.
Sonhou Alexandre da Macedónia.
Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre.
Sonhou o mar e a lágrima.
Sonhou o cristal.
Sonhou que Alguém o sonha...



(Jorge Luis Borges, in "Os Conjurados", 1985. )
* * *

Realmente magnífico, Jorge Luis Borges. Ainda por cima, actual e penetrante: Atente-se no 13º. (não acredito em bruxas, mas...) verso do poema...