Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

5 de jul. de 2009

O Bode Imarcescível - de Mário-Henrique Leiria

Em especial para a Lizzie (por causa do bode:) e para a Arabica (por causa do MHL:)

"É o que lhes digo.
Com esta idade e nunca o usei.
Há cerca de trinta anos apareceu-me uma oportunidade de o fazer, mas senti certas dúvidas e tive receio.
No entanto, ultimamente tenho-o lido com bastante frequência nos discursos que quotidianamente vejo nos jornais.
Já não sou criança e não quero deixar este mundo sem o usar pelo menos uma vez. É um vocábulo realmente impraticável, verão, mas mesmo assim vou usá-lo. Imarcescível. Aí está! Espantoso, não acham? Imarcescível. Alucinante! Por isso lhes conto


O BODE IMARCESCÍVEL

Julião amava os animais. Tinha um gato siamês teólogo e desdenhoso, dois perdigueiros de olhos tristes e um basset activo e escavador. Também uma gaiola com três periquitos protestantes e tivera um papagaio de que se vira obrigado a separar-se, dadas as constantes críticas e comentários do mesmo acerca da situação vigente.

Mas o que realmente o encantava era o bode. Trouxera-o para casa ao voltar de umas férias na montanha. O bode acompanhara-o sem fazer questão e isso comovera Julião. Era um bode jovem mas já com barba digna, que ficava a olhar para tudo com desdém, como prevendo inúmeras desgraças. Afeiçoaram-se um ao outro. Julião esmerava-se no tratamento e o bode, compreendendo que estava numa casa de respeito, passara a marrar apenas em polícias e cobradores. Mas comia, comia muito, comia tudo.

Antes de ir para a repartição Julião cuidava carinhosamente dos animais. Os cães no quintal, o gato livre de tomar decisões as mais ousadas, os periquitos com milho painço, pevides e cânhamo. Quanto ao bode, deixava-o em casa, com couves abundantes na cozinha, não sem antes o passear pelas traseiras e ter uma conversa séria com ele.

Um dia aconteceu o inesperado. Ao voltar a casa, à tarde, Julião encontrou o bode no escritório, sentado e a comer, voraz, a edição monumental de OS LUSÍADAS encadernada em couro azul-escuro e com ilustrações de Lima de Freitas. Só restava a capa, que era dura, e um pouco do canto nono. Ficou amargurado.

Que fazer? Como resolver aquilo? O bode podia voltar a ter apetências, lá se ia o Fernando Namora, o Eça, o Aquilino, sabe-se lá que mais! Não podia ser. E a solução surgiu-lhe. Levar o bode com ele para a repartição.

No dia seguinte, após as tarefas matinais, disse ao bode:

- Vamos lá, meu velho.

Saíram. O bode comportou-se, sempre ao lado de Julião, olhando as montras. Apenas tentou investir com um polícia mas conteve-se, entre a simpatia dos passantes.

Na repartição foi um alvoroço. «Olha um bode, olha um bode!» O espanto era geral mas o bode, indiferente, sentou-se ao lado de Julião.

E assim passaram os dias.

O bode ia de manhã para a repartição, almoçava na cantina com o Julião, passava a tarde sentado, observando a actividade múltipla da casa e indo lá dentro de vez em quando, e voltava à tarde ao lado de Julião, vendo as montras e mirando os polícias de través.

O diabo foi que um dia o bode teve um apetite feroz, como na altura de OS LUSÍADAS. Foi à secretária do chefe e comeu todos os processos em andamento que faziam a cabeça em água aos funcionários. Não deixou senão os agrafos e as molas das pastas de arquivo.

O chefe agarrou-se à cabeça e mandou chamar o Julião.
- Que é isto? - disse, de sobrolho franzido, quando Julião entrou.
- Isto o quê, senhor doutor?
- Isto - o chefe apontava para as sobras.

Julião observou bem e respondeu, humilde:
- Parecem restos de agrafos, não parecem, senhor doutor?
- Foi o seu bode, senhor Julião. O seu bode. Não pode ser, isto é impossível - e gesticulava, apopléctico.

Aí o Julião não achou bem.
- Desculpe, senhor doutor, mas não tenho nada com isso. Não intervenho, nunca intervim, na vida de bode nenhum nem de qualquer outra pessoa. O bode é livre, fale com ele.

E, pela primeira vez na sua vida de funcionário, virou as costas ao chefe e saíu, ofendido.

O chefe aveio-se com o bode. Parece que se entenderam.

O Julião não foi incomodado e o bode passou a andar de um lado para o outro, pelas salas e gabinetes.

O bode comia os processos, os processos ficavam arrumados. Os funcionários estavam encantados, escolhiam os melhores, os mais grossos e chamavam o bode.

Os tempos passaram.

Os chefes sucederam-se, os ministérios mudaram. O bode continuava na repartição, sempre jovem e activo.

Julião, já com o cabelo todo branco, reformara-se. O velho gato siamês fora juntar-se aos seus antepassados em Bubastis, os cães eram memória melancólica e a gaiola dos periquitos gritadores estava vazia. Apenas o bode continuava presente com amizade e ia todos os dias para a repartição. Estava no quadro.

Foi então que se deu o acontecimento decisivo.

Poderoso, imarcescível, o bode entrou pelo gabinete do ministro e comeu, logo ali, o decreto de mobilização geral que estava a despacho.

Foi eleito deputado pelo povo em delírio."


Nota do autor (do post:) - Dicionário da Língua Portuguesa - Porto-Editora

imarcescível

adjectivo uniforme

1. que não murcha; sempre viçoso
2.
que não se extingue
3. figurado imperecível; incorruptível

(Do lat. immarcescibìle-, «id.»)