Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

8 de mar. de 2009

Epílogo do epílogo...

Afazeres inadiáveis impediram-me de mais cedo vos dar conta da sequência da minha conversa telefónica com Poirot. Procurei fazê-lo de forma clara e o mais sucinta possível, mas sem perda do colorido original. Agora que acabei a narrativa, constato que ficou muito mais longa do que desejaria. No entanto, resumir a história tirar-lhe-ia todo o sabor, toda a riqueza e pitoresco do conteúdo, proporcionados pelos protagonistas, entre os quais se contam as minhas comentadoras e os meus comentadores (golpe baixo!) e, evidentemente, a extraordinária personagem que é Hercule Poirot. Portanto, heróicos e hipotéticos leitores, não desistam! :)

* * *
Tinha acabado de tomar o meu café da manhã quando Poirot me bateu à porta. Foi direito ao assunto, apesar do seu reconhecido gosto pelos circunlóquios e explicações teatrais.

- Caro Alien, como lhe disse ontem à noite, o seu raciocínio foi realmente brilhante. Esqueceu-se, porém, da pista que lhe ofereci ao sublinhar a palavra início, associada à inscrição na pedra. Considerando a mensagem do larápio, início de quê? Vou explicar-lhe a forma como abordei a pedra quando a vi aqui em sua casa, no dia em que descobri o autor da façanha. Já agora, sempre acrescento que, dos seus três suspeitos não eliminados, rapidamente percebi qual correspondia perfeitamente ao perfil psicológico adequado à proeza e ao gesto de soberba materializado na gravação feita na pedra e deixada à sua atenção. Porém, isso não me bastava. Perguntei, portanto, a mim próprio se não existiria nesse gesto mais do que uma simples gabarolice, ou tentativa de o humilhar, ou sensação de impunidade... Enfim, se não existiria, digamos, uma prosápia dentro da prosápia. Ao ler o texto, pareceu-me ele um tanto estranho, um tanto forçado. Comecei, por isso, a olhá-lo de outra perspectiva, deixando de lado o sentido das palavras para as considerar em si mesmas, reparando na forma e na disposição. E foi assim que cheguei. E agora pergunto-lhe, referindo-me à pista que lhe deixei: Tendo em conta a inscrição, o que poderia
ser o início?


A primeira palavra? "Ruínas"? Nada nos diz. A primeira linha? Também não é conclusiva, e o mesmo se pode dizer das duas primeiras linhas. Mais do que isso já não pode ser considerado início, não é verdade?
- Concordo, Poirot! Também analisei a inscrição dessa forma, mas não me veio à ideia nada de útil!
- Deveria ter persistido, Alien! Se não se tratava da primeira palavra, nem da primeira linha ou linhas, não poderia ser a primeira letra de cada linha?

- Talvez se surpreenda, caro Poirot, mas também pensei nisso, e cheguei à "palavra" RFEVA. A mim, nada me disse. E a si?
- Também não, claro! E ficou por aí?
- Fiquei, Poirot, desisti, vencido pelo cansaço...
- Pois olhe que o mesmo não aconteceu com a sua amiga Prof! Veja o que ela escreveu num comentário:

"Rumo ao blog
fus
tigada pela curiosidade mas
foi
-se a esperança, lido
o
último post;
la
mento ter de esperar mais um dia. Nem na
dio isto acontecia. E fico à espera e nem
pio!"


E acontece, caro Alien, que Rufus era o meu eleito, e foi também a sua assinatura que encontrei na pedra, quando considerei as primeiras sílabas de cada linha! O resto veio por acréscimo. Conhecendo o mau carácter do General Rufus e a sua manifesta tendência para a charlatanice e para a batota, percebi que poderia muito bem não respeitar a regra das sílabas. Ou então, como afirmou o narrador, ou seja, a sua amiga Teresa, a fluência de Rufus na leitura é muito fraca! E não passa de um gabarola sem limites. Faço aqui uma pequena pausa para lhe lembrar que todas as pessoas que comentaram os seus posts acerca do roubo do prémio lhe deram ajudas preciosas e se inclinaram, de um modo geral, para a culpabilidade do General Rufus.

Poirot encheu o peito de ar e continuou:


Olhando atentamente para as linhas seguintes, eis o que vi (aqui Poirot sacou de um papelinho muito bem dobrado, abriu-o com todo o vagar e pôs-mo diante dos olhos):

"Ru ínas serão em breve o que deste blog restará, a começar pelo estandarte.
Fus
tigado pela cólera dos deuses, o impostor receberá o devido castigo.
Este prémio não é para qualquer ser vindo das profundas, um profano alienígena, um hereje!
Ve rde, ainda por cima! Como é doce o sabor da vingança, e justo ter nas mãos o que mereço!
Aqui o declaro, para quem venha testemunhar a razão da minha ira e rir-se do usurpador."

Estarrecido, considerei a claríssima assinatura do ladrão: "Rufus esteve aqui."

- É notável, Poirot, notável! Foi, então, Rufus...?
- Claro, mon ami, claro! Palavra de Hercule Poirot!


A princípio entusiamei-me com a revelação, mas em breve o meu cepticismo veio ao de cima:


- Mas, Poirot, não poderia ter outra pessoa feito a inscrição e deixado a pedra para incriminar Rufus?

- Ah, mon ami, mas quem, de entre os suspeitos que ficaram, poderia ter cometido tal acto? A Condessa? A sua amiga Teresa Durães? Acha mesmo possível...?
- Na verdade, Poirot, não acho... mas, mesmo assim, faltam aqui provas...


Poirot indignou-se e gesticulou, como que a apontar os alvos do seu desagrado:

- Ah, caro Alien, sempre as provas, os inúteis indiciozinhos materiais, as pontas de cigarro, os copos com restos de bebida e marcas de bâton... e as celulazinhas cinzentas, para que servem? Sim, para quê? - Poirot abriu os braços e prosseguiu: - Mas quer provas? Pois bem, Hercule Poirot lhe dará as provas que tanto aprecia, e ainda algo mais! Tem a sua nave por aqui estacionada?

- Tenho...
- Então vamos, que não há tempo a perder!


Levantámos voo sem demora, e fui seguindo as indicações de Poirot sobre o rumo a tomar.

- Desça aqui! - exclamou o meu amigo, depois de uma olhadela discreta ao relógio de bolso.

Aterrei e escondi a nave entre umas árvores que ali estavam mesmo a calhar. A uns trezentos metros, avistei uma construção de um só piso. Interroguei Poirot com o olhar, mas o meu companheiro de viagem não se descoseu. À medida que nos aproximávamos, cada vez mais estranhava o local, até que, já próximo do edifício, identifiquei nitidamente a placa de um restaurante.

- Poirot? Um restaurante? Aqui é que estão as provas?
- Mais non, mon ami, aqui não!
- Mas... não me disse que não havia tempo a perder?
- Não seja impaciente, Alien, não seja impaciente! Isto é tudo menos perder tempo! Há que respeitar o horário das refeições, e estamos na hora do almoço... e acontece que neste restaurante, perdido no meio de nada, servem o melhor prato de moules et frites que já provei fora da Bélgica!

Já vencido e convencido, confidenciei:

- Não sei se sabe, Poirot, que já tive ocasião de me banquetear com essa deliciosa especialidade, algures nos arredores de Antuérpia!
- Ah, Anvers, mon ami, Anvers! Que saudades!

Apesar de todas as pressas, saboreámos lentamente o petisco, regado por um excelente branco da casa, continuámos com uma fatia de cheesecake e rematámos com um caffè espresso que estava mesmo no ponto. Já mais bem disposto, encaminhei-me para a nave, com Poirot ainda a elogiar a refeição e o chef.

Conhecendo Poirot como conheço, não me dei ao trabalho de lhe perguntar onde me levava, limitando-me uma vez mais a seguir a sua orientação. Não tinham ainda decorrido duas horas de voo quando o meu amigo finalmente falou:

- Ali, Alien, poise o seu veículo ali naquela clareira!

Obedeci e, ao descer, apercebi-me de que nos aproximávamos de um bosque bastante denso. Da clareira partia um único trilho estreito que começámos a percorrer logo que abandonámos a nave. Andámos uns bons quinhentos metros até darmos com uma espécie de muralha - e digo espécie porque me pareceu muitíssimo sofisticada e ostentando grande profusão de elementos decorativos. Para além dela, nada se via. Acercámo-nos de um portão blindado onde se materializaram dois guardas, estranhamente equipados com espadas. Interroguei Poirot com o olhar.

- Caro Alien, eis o acampamento do General Rufus!

Confesso que, nesse momento, senti alguma apreensão, ao contrário da confiança que Poirot parecia revelar. Um dos guardas perguntou-nos quem éramos e ao que íamos. Poirot respondeu sem a mínima hesitação, em tom autoritário:

- Sou Hercule Poirot! Acompanha-me o meu amigo Alien, e pretendemos falar com o General Rufus!

Para minha surpresa, o guarda inclinou-se respeitosamente perante o meu companheiro. Em seguida dispensou-me igual tratamento, e não pude deixar de pensar que, em boa verdade, o nome e a fama de Hercule Poirot chegavam aos lugares mais recônditos e às pessoas menos prováveis...

O portão abriu-se silenciosamente, como se alguém tivesse, do interior, accionado um telecomando - e percebi que o sistema de vigilância não se limitava àqueles dois guardas...

Entrámos, e logo estaquei, mudo de espanto.

Desenho do "acampamento" do General Rufus que compus de memória

- Ac.... acampamento, Poirot? Chama a isto acampamento???

De facto, perante os nossos olhos estendia-se um lugar paradisíaco, um autêntico resort de luxo, com espaços verdes, lagos, pequenas quedas de água, construções de elegantíssima arquitectura, ruas pavimentadas a mármore ou a calçada lusitana - e nem um só elemento militar visível. Ao fundo, um mar sereno, de um azul espantoso. Mas não preciso de me alongar na descrição: A imagem diz tudo!

- Alien, não me surpreende que Rufus tenha trocado a vida austera dos acampamentos militares por este luxo, que creio ser rodeado da maior segurança. Afinal, as chacinas e os saques foram-no enriquecendo, fizeram-no almejar outro estilo de vida, acentuaram a sua natureza vil e corrupta - e aqui tem outro exemplo da sua megalomania... Ou o produto das pilhagens lhe permitiu construír do nada este domínio, ou simplesmente o conquistou pela força das armas. Ah, mas eu já lhas canto!

Mau grado o estado de tensão em que me encontrava, não pude deixar de sorrir perante a prosápia de Poirot e a sua escolha de palavras...

O guarda guiou-nos até àquela que parecia ser a maior construção, uma espécie de pequeno palacete, e pediu-nos que aguardássemos numa sala ricamente mobilada e decorada, onde ficámos a apreciar quadros dignos da melhor galeria de arte.

Decorridos poucos minutos, o General Rufus fez a sua entrada majestosa, acompanhado por um subalterno que imaginámos ser o seu braço-direito.

- Que o traz por cá, Monsieur Poirot?
- A Verdade, General! A Justiça! O castigo do criminoso e a reparação devida à vítima do crime! - declarou solenemente Poirot, com largos gestos à mistura.
- Ora essa, Monsieur! E que tenho eu a ver com isso? - perguntou Rufus em tom altivo.
- Tudo! - retorquiu secamente Poirot. Sei que roubou o Prémio do Melhor Blog Intergaláctico ao meu amigo Alien, aqui presente (só então Rufus se dignou deitar-me um olhar de soslaio) e venho, como lhe disse, clamar por justiça! Suponho que já conhece Monsieur Alien...?
- Ah... um dos Verdes - rosnou o general - ... tenho uma vaga ideia...
- Mais do que vaga, General! - acusou Poirot. - Na verdade, entrou ilegalmente no blog do meu amigo e roubou-lhe o galardão!

A cara de Rufus ficou vermelha de cólera.

- Como se atreve a acusar-me nos meus próprios domínios? Olhe que...

Mas Poirot não o deixou continuar.

- Olhe que, digo-lhe eu, Hercule Poirot nunca fala de cor! Acuso-o, sim, General, porque sei!
- Ah, e sabe como? - perguntou Rufus, cada vez mais encolerizado.

Pormenor da sala onde decorreu a conversa com o General Rufus

O meu amigo levou a mão à algibeira e, num gesto dramático, sacou da pedra gravada e do papelinho que me mostrara nessa mesma manhã, e colocou-os diante dos olhos do General Rufus.

- Foi assim que soube, General. E agora, que tem a dizer? Que se deu à basófia de assinar o roubo como quem assina um quadro? Que foi vencido pela sua vaidade? (A esta última interrogação achei alguma piada...)

A cara de Rufus começou a passar do vermelho ao branco. Gaguejou:

- R... Rufus es... esteve aqui???? -N... n... não ff... fui eu! Não fui eu!
- Foi! - excalmou peremptório o meu amigo. E não adianta negá-lo. O que lhe mostro é prova bastante!

Rufus ia-se recompondo, mas, apesar disso, a sua palidez acentuava-se.

- Monsieur, fala muito e fala de alto, mas não tem provas! Como sabe que algum vulgar bandido não deixou a inscrição com essa frase para me incriminar? Tenho, como sabe, muitos inimigos!

- Et pourtant, - proferiu enfaticamente Poirot - essa assinatura é mesmo sua! É própria da sua personalidade. Mas não percamos mais tempo. Quer provas? Pois saiba que vai dar-me a melhor das provas possíveis: a sua confissão!
- Ora, ora, Monsieur Poirot, por quem me toma? Crê mesmo que eu, General Rufus, confessaria tal acto, mesmo que o tivesse cometido?
- Ah, sim, creio... Sabe, General, é perigoso subestimar Hercule Poirot!

Juntando o gesto às palavras, Poirot voltou a levar a mão ao bolso do sobretudo, e de lá extraíu algo de forma rectangular que não identifiquei, e que colocou frente aos olhos do General. Rufus examinou o objecto e a sua face começou então a adquirir um tom esverdeado - o que, admito, me preocupou um bocadinho...

- Então, General, reconhece alguém nesta fotografia? - perguntou Poirot, com um sorrisinho de triunfo.

Tratava-se, então, de uma fotografia! Rufus olhou-a e vacilou, cada vez mais verde.

- Eu... eu...

(No momento em que vos narro estes factos, tenho na minha posse uma cópia da foto, que Poirot entretanto me cedeu. Por muito que me agradasse publicá-la aqui como testemunho do ocorrido e para vosso divertimento, é evidente que o não posso fazer, sob pena de traír a confiança do meu amigo Poirot e a sua promessa ao General Rufus.)

Poirot prosseguiu, implacável:

- Quem é o sujeito que enverga essa estranha indumentária e, citando uma testemunha presencial, liga na perna, sentado em frente a uma garrafa de whisky quase vazia e, afirma outra testemunha presencial,
acompanhado de duas meninas esbeltas? Quem será, General? E o local, lembra-se do local? Será, e de novo recorro à palavra de quem tudo viu, uma casa de alterne onde passou tempos memoráveis? Então, General, confessa? Ou prefere ver a sua reputação para sempre arruinada, e os seus vícios alvo de chacota pública?

Poirot enfrenta Rufus com cara de poucos amigos

O meu amigo viera, afinal, fortemente armado... e a perturbação do general era evidente. No entanto, com um gesto brusco, arrancou a foto comprometedora das mãos de Poirot e rasgou-a em mil pedaços.

- E agora, Monsieur, que é feito da sua arma? Queria chantagear-me? Menosprezou Rufus - e isso, sim, é perigoso!
- Já vamos ver quem menosprezou quem, General. Saiba que, neste preciso momento, o meu amigo Capitão Hastings tem na sua posse uma dúzia de cópias da fotografia que destruiu, com instruções expressas para as enviar à Imprensa, a começar pelo Times, caso eu, Hercule Poirot, não me encontre com ele, são e salvo, dentro de duas horas, em local que combinámos! Saiba também que não tenho forma de comunicar com Hastings, pelo que seria inútil concretizar a ideia que passa neste instante pela sua torpe cabeça: Torturar-me!

Poirot pôs-se em bicos de pés.

- Confessa ou não?
- Eu... eu... Pronto, eu confesso! - sibilou Rufus, vencido. E agora saia dos meus domínios!
- Mais non, General! A sua confissão talvez baste ao meu amigo Alien, que tanto queria as provas (Poirot deitou-me um olhar de esguelha) - mas, para mim, não é suficiente!
- Que mais quer, então? - gritou Rufus, quase alucinado.
- Como lhe disse, vim aqui em busca da Verdade. Já a temos. Mas também o avisei de que vinha igualmente pela Justiça, pela reparação do dano causado ao meu amigo Alien e pelo castigo do criminoso. Assim sendo, exijo-lhe que, aqui e agora, devolva a Monsieur Alien o que lhe roubou! Ou isso ou a foto vai...
- Muito bem, Monsieur. Ganhou. Por agora.

O general dirigiu-se aio seu presumível braço-direito:

- Sem Nome, traz-me aquilo que te dei a guardar!

Sem Nome desapareceu nas entranhas do palacete. Após alguns segundos de hesitação, Rufus perguntou a Poirot:

- Como obteve essa fotografia?

- Ah, General, é bem certo que os pecados antigos projectam longas sombras! Acontece que este seu pecado nem sequer foi muito antigo. Eu explico-lhe - Poirot esfregou as mãos e lançou-se num discurso que me ia deixando cada vez mais atónito:

- Há apenas algumas semanas, um interessante grupo reuniu-se à volta de uma mesa do Mini Bar Boca de Pano
.

Dele faziam parte a Senhora Dona Teresa Durães, acompanhada pelo Sr. Narrador, por uma Caturra que lhe poisava no ombro, pela D. Ingrácia e marido e pela Senhora Condessa D'Aqui e D'Além; a Senhora Dona Lizzie, que não largava da mão um pato de plástico branco e conversava animadamente com a Senhora Dona Lili Malveira e com o Sr. Engº. Phil Collins da Conceição; o compadre Manel das Cabras Ruivas, que não largava da vista a Dona Lizete das limpezas e a copeira Ofélia, enquanto trocava pilhérias com o compadre Zé Zarolhe; a Professora Prof, em animada cavaqueira com a menina Andreia Vanessa e a Madame de La Palissa; a Senhora Dona Bettips, o Sr. Legível e a sua Ovelha Anónima, a Senhora Dona AlienDS; a Senhora Dona Wind, o Sr. Spartakus, a Senhora Dona Justine e o Sr. Mocho Falante; a Senhora Dona Emma Larbos, a Senhora Dona Mariatuché, a menina Beatriz, uma Senhora soit-disant Coxa e Marreca, a Professora Mar, a Professora Rosalina, a Senhora Dona Arabica Das Perguntas Difíceis e a E.T. Senhora Dona Lola; as poetisas Afonsa Lapa da Videira e Luísa dos Camiões, rodeadas pelo dramaturgo Gil Vicente e pelos poetas José Régio, Augusto Gil, Bocage, Fernando Pessoa, António Aleixo e Mário de Sá-Carneiro; os elementos de um grupo coral alentejano que volta e meia desatavam a cantar "Eu ouvi um passarinhôôôô..."; o gato Alá - e que me perdoe alguém que de momento não me ocorra. Lá do alto, velavam pelo estranho grupo Santa Lizzie (de evidente origem!) e S. Miguel Arcanjo, convocado pela já citada Senhora Dona Emma Larbos. A conversa ia animada, uns atiravam-se às minis e aos salgadinhos, outros ao vinho quente com canela, enfim, uma autêntica festa! Ora acontece que, paredes meias com o Mini Bar, funciona uma discreta casa de alterne, facto que - quero crer! - aquela distinta companhia ignorava... mas que se tornou evidente quando uma larga porta de comunicação, convenientemente disfarçada na parede, se abriu para deixar saír alguns fregueses da dita casa, apostados certamento em terminar a noite no Boca de Pano. Tendo a porta permanecido aberta, fosse por incúria ou por operação de marketing, os convivas tiveram ocasião de apreciar uma cena digna de registo: Um indivíduo manifestamente alcoolizado, envergando um traje esquisito e liga na perna, tentava cantar a Lusitana Paixão acompanhando uma máquina de Karaoke, enquanto ia escorregando pela mesa abaixo, apesar de amparado por duas belas funcionárias do estabelecimento. O grupo dividiu-se entre a estupefacção, o escândalo, a gargalhada e a curiosidade. Porém, duas das senhoras, que obviamente não vou nomear, General, para que não caia na tentação de sobre elas exercer furtivamente represálias, mantiveram um sangue-frio admirável e registaram a cena. Foi assim que...

Poirot calou-se quando viu reaparecer Sem Nome transportando uma pequena caixa que me era muito familiar, e da qual, emocionado, não tirei os olhos. Entregou-a ao General Rufus, que a abriu, perguntando a Poirot:

- Está tudo?

Hercule consultou-me com o olhar.

- Tudo, Poirot. O galardão, a dedicatória, o estandarte... não falta nada - respondi louco de alegria.

- Faça-se então Justiça! - exclamou Poirot encarando Rufus, que, manifestamente contrariado, me entregou a caixa. Segurei-a com mãos trémulas, e o meu amigo concluiu:

- General, foi feita Justiça e o dano reparado. Falta o castigo do criminoso. Vou ser benevolente... por esta vez. Conservarei na minha posse as cópias da fotografia, e ai de si se alguma vez voltar a cometer proeza semelhante! Ai de si se tentar vingar-se de alguma das pessoas que mencionei, e que são absolutamente inocentes! A cólera de Hercule Poirot abater-se-à sobre a sua cabeça, General! Lembre-se das minhas palavras!

Retirámo-nos, acompanhados pelo mesmo guarda que nos facultara a entrada. Cerrado o portão, enveredámos pelo trilho de regresso à clareira. Não me cansei de agradecer a Poirot e de lhe tecer merecidos louvoures. Recebeu-os com naturalidade, alisando significativamente o bigode e sorrindo, satisfeito.

- Caro Poirot, compreendo perfeitamente que não tenha querido revelar ao General Rufus quem imortalizou a cena da casa de alterne, mas... não mo dirá a mim, Alien?
- Mais oui, mon ami, claro que lhe digo! A sua amiga Arabica registou-a com o auxílio de um aparelho a que chamam câmara digital; e a sua amiga Lizzie gravou-a através de um engenho conhecido por memória fotográfica. Aí tem!
- Bom, confesso que não fico surpreendido...

Durante o voo de regresso, ofereci:

- Poirot, sei que não é agradecimento bastante, mas estamos na hora do chá e, como muito bem disse, é necessário respeitar o horário das refeições. Convido-o, com todo o gosto, a beber em minha casa uma nova tisana que tenho andado a experimentar!

Pelo olhar de Poirot perpassou - pareceu-me! - um lampejo de ironia...

- Mon ami, sinto-me muito honrado, mas, como sabe, tenho de me encontrar com o Capitão Hastings dentro do prazo acordado... A palavra de Hercule Poirot é sagrada!
- Seja, então, Poirot. Ficará talvez para outro dia...

O local combinado era, afinal, a residência de Hastings. Estávamos já perto quando a pergunta me ocorreu de súbito:

- Poirot, desculpe a minha curiosidade... bem sei que contou a Rufus as circunstâncias em que a sua comprometedora visita à casa de alterne foi fixada, e até me disse há pouco por quem... mas... parece-me que não chegou a revelar como obteve as fotografias...?

- Ah, mon ami... achará certamente natural que, no dia seguinte ao da reunião no Mini Bar, já algumas cópias da foto e da memória fotográfica andassem de mão em mão entre as pessoas de que falei. Decerto calculará que, na minha breve investigação, tive ocasião de ler atentamente as suas caixas de comentários, que se revelaram um auxílio precioso. Finalmente, haverá de imaginar que contactei algumas das testemunhas... mas sabe, caro Alien, quando estão em causa les dames, um cavalheiro tem que ser discreto... compreende, não é verdade, mon ami?


Compreendi perfeitamente. Saíra-me fresco, este Poirot! Chegados ao ponto de encontro, despedi-me, demonstrando efusivamente a minha gratidão, e segui viagem, contemplando com satisfação e orgulho o meu galardão, e jurando que nunca mais o exporia no blog, desprotegido e sujeito à cobiça de qualquer patife. Porque, é bem verdade, Rufus há muitos! Rufus há muitos!