Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

9 de jun. de 2006

A receita da semana

Desta vez, a receita é melhorada, pelo menos na quantidade: há uma sobremesa, simpática contribuição da Teresa Durães, e um prato vegetariano, já se vê para quem.
Pediu-me a Maloud algo que não metesse facas, para um jantar "berbere" de apoio à nossa selecção. Encontrei uma coisinha que talvez só precise de faca para ser partida. Depende de como saia e da preferência (a comer) de cada um.



TARTE DE SARDINHAS COM CERVEJA E PIMENTOS
Ingredientes (4 pessoas):

* 300 g de massa folhada congelada
* 600 g de sardinhas
* 1 pimento verde
* 2 cebolas médias
* 3 dentes de alho
* 1 raminho de salsa
* 3 ovos
* 1 dl de natas
* 2,5 dl de cerveja
* manteiga, sal e pimenta qb

Preparação:
1. Descongele a massa folhada à temperatura ambiente
2. Amanhe as sardinhas e, de seguida, retire-lhes a cabeça e lave-as bem.
3. Corte as cebolas e os alhos em meias luas, o pimento em tiras, e pique a salsa.
4. Depois de descongelada, estenda a massa folhada sobre uma mesa e forre com ela uma forma previamente untada com manteiga.
5. Coloque uma camada de legumes no fundo da tarte, sobreponha as sardinhas, e depois os restantes legumes.
6. Misture as natas, os ovos e a cerveja; tempere com sal e pimenta.
7. Regue a tarte com este preparado e leve-a ao forno a 180º, durante cerca de 40 a 45 minutos.
8. Retire do forno e sirva.



FLAN DE ESPARGOS (Alternativa vegetariana não fundamentalista)

Ingredientes:

* 600 g de espargos verdes
* 3 ovos
* 1 copo de leite evaporado
* margarina light
* sal e pimenta

Preparação:
1. Pré-aqueça o forno a 170ºC
2. Lave os espargos e coloque-os num tacho com água e sal, deixe ferver e deixe cozer até ficarem tenros. Escorra bem, corte em pedaços pequenos e misture com o leite evaporado e os ovos.
3. Unte pequenas formas com a margarina e distribua entre elas o preparado. Leve ao forno, em banho-maria, durante 45 minutos.
4. Retire do forno, deixe arrefecer e desenforme, passando a ponta de uma faca em volta das formas.




SOBREMESA - BABA DE CAMELO


Ingredientes:
* 1 lata leite condensado
* 6 ovos

Preparação:
1. Colocar a lata de leite condensado numa panela de pressão durante 45 minutos
2. Bater as claras em castelo
3. Juntar o leite condensado saído da panela de pressão às gemas
4. Envolver as claras com leite e ovos
5. Pôr no frigorífico
6. Não ir fazer teste de colesterol


BOM APETITE!

8 de jun. de 2006

Passeio

I


Viemos devagar como quem longamente se interroga. Sugerimo-nos a espuma, e o que ficou foi sombra.

Ao sabor dos ventos procurámos os planos secretos da paisagem. Respondeu-nos o frio de muralhas erguidas em pedra antiga, orgulhosas, serenas, quase transparentes. No vértice da luz semeámos uma pátria inconsolável, uma pátria de estrelas e cantigas e automóveis deitados em círculo na relva. Subimos os degraus e não havia escada. Havia sede. Lá mais acima o céu ria-se, quem sabe se de nós. Olhámos em volta, e novamente em volta. As coisas giravam, parecia. As coisas sempre eram coisas, e tinham cores e cheiros.

E, de repente, o mar.




II


O mar surpreendeu-nos, secreto e silencioso. Desprendendo-nos de nós, procurámos os sons que nos situassem, o onde, o como, o se.

- Está frio...

A voz surgiu de súbito, talvez do mar, talvez do nada.

- Está frio.

A minha voz, único som aparente na estranheza da tarde, no divergir da luz. Ou seria a tua? Agarrámo-nos à voz, âncora de um inesperado crepúsculo rodeado de muralhas cada vez menos transparentes.

Lá em baixo, os automóveis levantavam-se. Comiam a relva, tranquilos, cerimoniosos, em círculo, sempre em círculo. A pátria inconsolável levantou a manta do piquenique e dobrou-a com cuidado, já a pensar na próxima vez.

Era tempo. Começámos a descer as coisas que sempre eram coisas, a escada que não havia, a ponte da tarde, os cheiros e as cores.

- Está frio.

6 de jun. de 2006

Discussão

- Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.
Desculpei, mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo mesmo, e ainda com conversa fiada como brinde, isso sabia eu. Que mo viessem dizer, era outra coisa. Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos. Acho um snobismo.
- Eu sou democrático - rugi entre dentes, como resposta. - Tenho amigos no exílio, todos democráticos. É um sacrifício que poucos fazem, ir para o exílio e ser professor universitário exilado e democrático. Eras capaz de fazer isso?
- Não sou democrático.
Não havia resposta a dar. Nenhuma. Ele não era democrático, não sabia de democracia.
Eu sim, sou democrático, até já quis ir à América, que me afirmaram que lá é que é a democracia.
Recusaram-me o visto no passaporte, disseram que eu era comunista! Viram isto!?

(Mário-Henrique Leiria, "Contos do Gin-Tonic")