Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

24 de fev. de 2008

Desafios...

Por princípio, não os aceito. Nada que possa implicar passagem de testemunhos, correntes, cadeias. Com uma ou outra excepção, admito. Vem isto a propósito de dois desafios que me foram recentemente lançados pela GI e pela MJF.

O primeiro consiste em escrever um texto do qual constem as minhas 12 palavras favoritas (assumo que se trata das palavras em si, e não do seu significado, senão todos escolheríamos coisas como Amor, Paz, Liberdade, e etc..., e onde caberiam palavras como sobressaliência, gotícula ou até mesmo arco-íris?)

O segundo propõe-me dizer o que seria eu, se fosse... por exemplo, se eu fosse um mês, seria...

Para encurtar razões, os desafios e as respostas podem ser encontrados neste belo texto da GI, e nesta resposta muito interessante da MJF. Convido-vos a lerem ambos os posts, porque valem a pena, e para que a minha resposta faça algum sentido...

Resolvi simplesmente fintar estes desafios, mas de modo algum ignorá-los. Deixo aqui um texto que escrevi, o princípio de uma história ainda por acabar, e não é por acaso que o ponho aqui assim mesmo, mas porque não quero dar-vos uma história: apenas palavras, para que, em resposta ao desafio da GI, possam escolher as 12 que, pela sua colocação no texto, ou pelo que muito bem vos parecer, entendam que me agradam mais; e para que, respondendo ao desafio da MJF, descubram o que eu seria se fosse aquelas coisas todas que constam do post que acima referi...

A mancha azul

Altamiro olhou-se ao espelho, confirmou o penteado e ajeitou o nó da gravata de seda cinza. Gostou do resto que viu: o fato escuro de bom corte, a camisa de alvura imaculada. Estava já a voltar-se quando reparou que algo não batia certo. Passeou o olhar pelo espelho, e por fim descobriu: uma pequeníssima mancha azul no limite direito do espelho, situada exactamente ao nível do quarto botão, a contar de cima, da camisa branca. Altamiro desviou o olhar para a camisa e observou-a com atenção. Não viu mancha nenhuma. Considerou de novo o espelho, afastando-se ligeiramente para a direita. A mancha continuava no mesmo sítio, mas parecia-lhe agora um minúsculo sorriso azul. Disfarçado de mancha. Já um tanto irritado, recuou três passos e fitou o espelho. O sorriso lá estava. Girou cento e oitenta graus sobre o pé direito, fez uma pausa de três segundos e completou o círculo. Quando levantou os olhos, lá estava a mancha. No mesmo ponto rigoroso.

Iam sendo horas. Altamiro colocou a carteira e as chaves nos bolsos do costume e saíu. Desceu os dois lanços de escadas que o separavam da rua e percorreu distraído os cento e vinte metros até ao café. Como sempre, sentou-se ao balcão e pediu uma bica cheia. Enquanto a beberricava, arriscou uma olhadela furtiva ao espelho atrás do balcão. A mancha lá continuava. Azul. Voltou a fixar-se na camisa. Branca. Só branca. Pediu um copo de água e, quando o empregado o trouxe, perguntou-lhe se lhe notava algo estranho na camisa. Que não, respondeu o Lázaro.

Altamiro levantou-se e saíu. A paragem ficava quase em frente. Atravessou a rua mesmo a tempo de apanhar o quarenta e seis e sentou-se no primeiro lugar vago que se lhe deparou. Notou ao lado a presença de um companheiro de viagem habitual, com quem nunca falara. Provavelmente, era também uma pessoa reservada. Deixando-se embalar pelo movimento sincopado do autocarro, Altamiro recostou-se no assento e suspirou. Fechou os olhos e concentrou-se na escuridão, preparado para o trajecto até à baixa. Não excessivamente longo, aliás.

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À MJF e à GI: agradeço a amabilidade de me terem escolhido, e espero que a minha resposta esquisita vos não tenha desiludido demasiado...

A passagem dos desafios, pois... se os não aceito, também não os passo. No entanto, as primeiras ONZE pessoas que leiam este post e queiram escrever um texto com as suas 12 palavras preferidas, façam o favor... e as primeiras NOVE pessoas que queiram dizer o que seriam se fossem, idem aspas...