Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

28 de jul. de 2010

Daniel

Hás-de contar-me tua mágoa secreta
tua sede negra
            tua sede louca

Hás-de contar-me das noites perdidas
            nos caminhos do sonho
      e das virgens que deitaste
            em tua esteira
      nas mornas noites deste eterno estio

Hás-de dizer-me dos teus olhos brilhantes
            do riso adormecido
            das mãos abertas e vazias
            e daquelas excursões ao paraíso
      das viagens adiadas

Hás-de dizer-me do vinho que te embala
            do sangue tumultuoso que em ti canta
            duma certa raiva apercebida
e das impressões que ficam
            dos teus pés descalços
            no alcatrão das avenidas

Hás-de desmontar peça por peça
            o teu espírito inquieto
            e revelar enfim o conteúdo
      dos noctunos pensamentos
            que em ti ardem

Que eu espero poder dizer-te
            uma palavra amena semeada
      de um longínquo obrigado vagamente triste
      e afinal beber contigo um copo
            de vinho tinto Daniel.


(Maputo/Coimbra, 1972)