Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

30 de jul. de 2008

O crepúsculo dos verbos

Rosa também, como as outras, pela vereda ladeada de silvas, urzes, matagal, uma ou outra flor dispersa, pontos inusitados de cor que não o verde, os vários tons de verde. Trilho acima, no crepúsculo do dia, no crepúsculo de Rosa, à hora do cansaço maior, os pés descalços, gretados, o alguidar da roupa lavada à cabeça, o dia perto do fim, o caminho até à pequena aldeia pendurada no monte, quase no cimo, as casas de granito espesso, frio, o chamamento de Rosa e a recolha das roupas, Rosa enfim de regresso ao lar.


Em breve a sopa pronta, a panela fumegante, o odor inconfundível, o marido já à mesa tosca, à espera, cansado, gasto pela terra, muitos anos, muitos anos nas rugas no rosto de Rosa, nos gestos da preparação da sopa, as batatas, a hortaliça, um pouco de chouriço às vezes, mais por causa do gosto, o jantar solitário, os filhos há muito na cidade, sem tempo, sem tempo.


De manhã bem cedo o percurso inverso, a descida do trilho, a roupa suja, os olhos ainda atentos a uma ou outra flor, por vezes mesmo no Inverno, e nesse caso o frio por dentro da roupa e do xaile quase sempre negros, quase sempre o orvalho matinal nas ervas de ambos os lados do atalho, Rosa, como as outras, caminho abaixo até ao ribeiro, a roupa na pedra da margem, as mãos diligentes, o sabão, a roupa na água, a roupa batida, novamente na água limpa, lavada.


Todos os dias menos ao domingo, tempo de pouco descanso, de missa, de lida da casa, de limpeza, do almoço do marido cansado, de Rosa ao fogão, um cozido simples, sempre as batatas, a couve, um pouco de carne, um naco de chouriço, o sol no Verão, o degrau da porta, dois dedos de conversa às vezes, Rosa como as outras.


Nos domingos de festa, Rosa com a mesma roupa, no adro da igreja sem gambiarras de luz, apenas dois holofotes de circunstância e uma aparelhagem rudimentar, cortesia do showman, fornecedor habitual de romarias e festividades avulsas das aldeias, a carrinha cheia de festas e música e mistérios equipada com um altifalante adequado à função, os foguetes antes do som da aparelhagem do showman por cima do toque dos sinos da pequena igreja, e depois o baile também já com músicos e cantores, o velho Cardoso do violino, desde sempre o artista local, uma viola-baixo eléctrica um tanto surpreendente a par do harmónio e da viola beiroa, os imprescindíveis ferrinhos, guitarras de vários tamanhos e formatos, um bombo e uma tarola, e demais instrumentos avulsos e variáveis, as vozes e, durante o descanso da banda, novamente a música da aparelhagem sonora, mas sempre, sempre o baile.


Rosa como as outras, mas diferente, desde miúda com todo o corpo ao sabor da dança, agora com a saia escura ao vento, os pés gretados mas velozes, o ritmo exacto, os movimentos de uma elegância aparentemente inesperada naquela idade, os braços sonhadores, as pernas ainda fortes, ágeis, incansáveis, Rosa imparável até ao fim do baile, a dança no sangue até ao fim da noite.


De regresso a casa, a carrinha do showman aos solavancos na estrada coleante, as luzes ainda visíveis nos altos e baixos, a carrinha com a festa lá dentro, embrulhada, silenciosa, à espera de outro dia, de outra noite, de outra aldeia, Rosa finalmente presa do cansaço, de um cansaço agradável, feliz, não o da subida do caminho com a carga de roupa lavada, e o degrau da porta ali mesmo a jeito, o marido já com um bom par de horas de cama, Rosa de olhos fechados no degrau de pedra, de olhos lentamente abertos em direcção a um céu de lua nova, de estrelas nítidas, a Ursa Maior, sete vezes a direito a distância entre as guardas e eis a Estrela Polar, última estrela da cauda da Ursa Menor, e ainda as Três Marias de Orion, o W da Cassiopeia, os olhos líquidos de Rosa no percurso do acastelamento de constelações, do acasalamento de galáxias, ou apenas de anónimos pontos luminosos, lá muito em cima, brilhantes, brilhantes como o olhar de Rosa antes de amanhã.

37 comentários:

Vanda disse...

Alien! :)

Lindo!


Tão bem escrito, que nos sentimos parte da subida, tão bem descrita a Rosa e tao bela a Rosa, de pés gretados pela vida, ohar brilhante pela musica, pernas ágeis pela dança!


Ao ler dançamos com ela.


E no fim das letras, sorrimos.


Por momentos o nosso olhar brilhou com ela.


Um beijo, Sr.Dos Sete Instrumenos :)

Vanda disse...

Alien :)

a segunda imagem não faz pare do quotidiano da Rosa, pois não? :)

Vanda disse...

Ping...



Pong!


;)

Teresa Durães disse...

linda prosa!

Lizzie disse...

Oh Alien, que prosa tão ritmada!

E a lembrar uma dança circular em volta de um eixo: "Rosa" com "as outras" até que Rosa sai e as outras, coitadas, lá continuam a viver, perdão a dançar, em círculo.
Dança que dança para essa fuga em direcção ao sonho, que apesar da canseira não tem fronteira, urbe ou licenciatura.

Quem vive, de uma forma ou de outra, tem que gretar os pés nem que seja a mando da alma.

E belas imagens das constelações, essas viagens impossíveis ao tacto mas tão gratas ao voo.

Parabéns e abraço.

nnannarella disse...

Muito bom, muito belo, Alien.
É um regalo conhecer a Rosa, que mesmo na rotina indiferente dos caminhos ínvios e das silvas magoantes, sabe encontrar a felicidade em pequenos detalhes, como estrelas em castelo... Tem alma doce, de delícia:)
Excelente início de leituras noctunas para mim; vasi tanti para ti.

bettips disse...

Cegante
comovidamente sorrindo das rosas das hortinhas mimosas

...felizmente há luar ...

Lindo Alien, de girar entre sílabas de amor e a síncope das palavras, ao amanhecer de Rosas. Nossas conhecidas.
Bjinho

wind disse...

Mas que bela prosa Alien!
Adorei todas as descrições, os pormenores.
Parabéns:)
Beijos

Emma Larbos disse...

Até eu, que não sei dançar e padeço de dislexia dos pés, bailei com a Rosa em volta do adro e regressei ao degrau de onde amanhã com ela hei-de partir para as tarefas da roupa!
Belo texto!

Vanda disse...

Alien,


e aqui estão os acordes!:)


Lindisssimos, de uma sensibilidade que nos envolve plenamente!

E quando os julgamos adormecidos...ei-los que voltam e nos voltam a embalar!

Obrigada, Alien :)

Alien8 disse...

Vanda,

Obrigado!

Sobre as imagens: têm a ver com a história da história, mais do que com a história propriamente dita.

A primeira representa, obviamente, o crepúsculo. A segunda, muito menos obviamente (mas foi o que arranjei...), verbos, que podemos supor estarem escritos naqueles papelinhos.

Temos, assim, O crepúsculo dos verbos". Porque terei eu dado esse título à história? :)

Quanto aos acordes, já foram um bocado tarde, mas lá estão, e ainda bem que te agradam e embalam. Espero que também tenhas apreciado a discrição com que fiz o link para a tua história da guitarra :)))))

Bom fim de semana e um beijo.

Alien8 disse...

Teresa,

Obrigado, um bom fim de semana e um beijo.

Alien8 disse...

Lizzie,

Muito interessante, a tua visão da história da Rosa! A dança circular e a fuga em direcção ao sonho, sem dúvida.

O ritmo peculiar do texto tem a ver com a pergunta que acima fiz à Vanda, ou seja, porquê este título?

São coisas que podem saír bem ou mal ou assim-assim. Confesso que gostei do resultado... e da forma como escrevi para o obter. Mas muitas pessoas não concordarão, acho. Com o resultado, porque o gozo de ter escrito assim, esse ninguém mo tira :)

Obrigado, bom fim de semana e um abraço.

Alien8 disse...

Nnannarella,

Estragas-me com mimos, e dizes muito em poucas palavras :)))

Bom fim de semana e muitos VASI!

Alien8 disse...

Bettips,

Ou, às vezes, não há luar, mas vêem-se melhor as estrelas :)

Citando-te:

"...de girar entre sílabas de amor e a síncope das palavras"

Uma vez mais, a síncope das palavras, o ritmo. Despercebido é que não passou... e ainda bem que gostaste!

Nossas conhecidas? Sem dúvida.

Um bom fim de semana e um beijo.

Alien8 disse...

Wind,

Óptimo que tenhas gostado, mesmo dos pormenores:)

Um bom fim de semana e um beijinho para ti!

Alien8 disse...

Emma Larbos,

Ah! Não estou só! Como já tenho insinuado, não sei dançar e padeço de dislexia nos pés, sobretudo quando toca à dança. Que bom ter companhia! Sempre podemos, como escreveu algures a Vanda, "dançar com os olhinhos" :)))

Tenho a agradecer-te, mesmo com esses problemas, a coragem de teres bailado com a Rosa em volta do adro. E as palavras finais.

Um bom fim de semana!

Vanda disse...

Alien, bom dia!

Obrigada :)) pela passagem aerea:)



Gostei muito das palavras escolhidas por ti para título e associei o crepusculo à fase de vida da Rosa (marido cansado pela terra trabalhada, quebrado pelo peso do silencio das pedras e enxadas, filhos criados e distantes) todos os verbos já "vividos" em tempo passado, nenhum a inquietá-la de novidade, quase todos eles a anoitecerem dentro da Rosa.

Não fosse a música.
Sempre no presente e a levá-la de novo às estrelas.

Um beijinho e bom fim de semana!

Vanda disse...

Ah! :)

Em relação a dislexias de pés :) olha que perante a "prova" (concerto de sabado) fiquei a saber :) que embora na minha avançada idade :) ainda sou incapaz de ficar imóvel, ouvindo as músicas que fizeram parte dos meus ultimos 30 anos ;)

Não que dê "aquilo" nome de dança ;) mas.... ;)

eheheheheh

Alien8 disse...

Vanda,

Não tens que agradecer, a "passagem" é mais que justa e devida.

Associaste o crepúsculo à vida da Rosa, tal como eu. Mas o título deve-se mais ao facto de ter tentado não usar verbo nenhum no texto, com excepção dos particípios passados ou adjectivos verbais, e mesmo estes com a preocupação de terem, sempre que possível, uma função apenas adjectivante. Foi uma experiência que gostei de fazer, e que "conduziu", quase sem que me apercebesse, o texto a este resultado.

................................

Eu não sei dançar, mas não sou paralítico, caramba! Há música que me faz mexer, sem dúvida! Se o faço ao ritmo da música, isso é outra história :)))))

Bom resto de sábado, bom domingo e um beijo.

Anônimo disse...

Crepúsculo. Precisamente. E belíssima, a palavra.
Abraço.
PR.
www.suckandsmile.wordpress.com

Vanda disse...

Alien,

Foi uma experiência muito bem construida, porque realmente conseguiste chegar ao objectivo.

Que ideia original a tua, fotografares verbos escritos em pequenos papeis!

Faz todo o sentido!

E sobre o crepusculo dos verbos, aqui fica um bom dia e um beijinho!

e-ko disse...

crepúsculos de verbos, de rosas e de estrelas e todas as alvoradas que se vão seguindo para que outras rosas nos ofereçam o seu perfume...

gostei muito

Lola disse...

Alien,

E afinal o teu belo texto não tem verbos.

Interessante a tua construção das frases e das ideias a que transmites todo o movimento sem a acção verbal.

Como só tu.

Mas eu desvendei o enigma da Rosa:)))

Tantos beijos.

Alien8 disse...

PR,

Obrigado!

Boa semana e um abraço.

Alien8 disse...

Vanda,

O seu a seu dono: a foto não é minha. Só consegui encontrá-la :))

Se achas que cheguei ao objectivo, óptimo!

Boa noite.
Boa semana.
Beijos.

Alien8 disse...

e-ko,

Também gostei muito do teu comentário.

Obrigado.
Boa semana e um beijo.

Alien8 disse...

Lola,

Como só eu, também não diria... Acho que houve uma vez um gajo no Botswana que conseguiu fazer o mesmo :)))))))

Sem dúvida que desvendaste o enigma da p(rosa) e percebeste a ideia.

Como só tu :)))

Beijinhos, muitos!

P.S.: Ahhh, olha que me esqueci mesmo dos verbos! Malandros! Andam a brincar às escondidas comigo :)))

uf! disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
uf! disse...

Já abri a sala de fumo:-)
Obrigada pela visita. E, já que aqui estou, permita-me que lhe deixe a minha versão preguiçosa e demagógica da musse de manga -demagógica porque feita com leite condensado...magro :-)

4 iogurtes magros, naturais
1 lata de leite condensado magro
1 lata de polpa de manga

Deita-se tudo (não as latas, mas os conteúdos) numa taça grande e bate-se com a as varas de fazer claras em castelo - de preferência movidas a electricidade.
Vai ao frigorífico umas 2 horas, para arrefecer e ficar mais consistente.
Serve-se em taças enfeitadas com phisalis e/ou folhas de menta
Continuação de boa semana
(apaguei o comentário anterior pois estava cheio de gralhas)

Alien8 disse...

Tia adoptada,

Obrigado pela visita e pela receita "demagógica", a considerar em próximo post gastronómico, que o anterior já lá vai...

Aparecerei na sala de fumo reaberta.

Continuação de boa semana também para si.

Rosalina Simão Nunes disse...

..."o marido na cama já um bom par de horas..."


Encontrei um verbo. :D


Mas no seu todo sente-se o crepúsculo. Um retrato de alguém que já não vive.

Vanda disse...

Ah!

Prepara-se de novo a mesa? :)


Então aqui fica uma dica, um truque ;)


Numa pequena garrafa de azeite (ou utilizando um galheteiro, fora do alcance da Asae) colocar 5 dentes de alho e uma malagueta...

"Cai" bem em saladas, peixe e legumes cozidos.

Manter sempre o nivel de azeite a 80% do recipiente e mudar os alhos e a malagueta de 2 em 2 semanas, ou logo que se note mudança de cor.


E principal que vai ser?

Beijos

Alien8 disse...

Rosalina,

:)))

Tinha esperança de que alguém encontrasse um verbo, porque calculava que me tivesse escapado.

Foste tu! Eheheh! Isso vai permitir-me fazê-lo desaparecer, como acontecerá com qualquer outro que me tenha escapado :)

Por isso, e pelo resto, obrigado!

Um beijo.

Alien8 disse...

Vanda,

Registo a dica parcialmente ilegal :))), mas ainda não sei quando porei a mesa, nem qual o prato principal. Talvez nem seja o próximo post. Quem sabe? :)

Obrigado!

Um beijo.

Anônimo disse...

E que bela prosa :)******

Alien8 disse...

Mar,

Obrigado ***