Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

29 de mai. de 2008

29 de Maio de 2008. Sem cubos. Sem tambores nem cornetas. Com dedicatória óbvia implícita. Com um beijo. Ou vários. Por seres.


COMO SE COME UM GORAZ (Oitava década do século XX)


Um goraz nem sempre é um goraz.
Ainda que tenha forma de peixe,

e se coma à mesa, de garfo e faca e conforto,

mesmo assim indefeso, objecto consumível,

o goraz é mais que o peixe morto
que sobra ou não, con
forme for
menos ou mais apetecível.

Que pode então ser um goraz?

- Aquilo que te pedimos - e não dás,
aquilo que te pedimos - e nos dás.

No goraz que nos serves está o peixe,
estão os temperos, o mais que for preciso,

mas sobretudo os gestos que dele fazem

um produto acabado, pronto a ser comido,

mas sobretudo a vontade de dizeres:

Faço-vos o goraz. Aquilo em que pensaste

ao transformares matéria prima em alegria.

E convém não esquecer a força de trabalho:

Do processo de produção faz parte a simpatia,

o carinho posto em cada peça que juntaste,

o amor escondido num simples dente de alho.

(Perdoa-me o marxismo-leninismo,
heróica militante da cozinha!)

Assim o goraz é cada vez menos um goraz,
cada vez mais algo de ti que tu nos dás.

Se te pedíssemos uma estrela, um arco-íris,
o mais recente país da tua criação,
olhar-nos-ias sorrident
e, e por certo nos darias
algo assim como um prémio
de consolação.

Mas pedimos-te um goraz, um vulgaríssimo,
materialíssimo goraz. E ao comê-lo,
em cada pedaço que passa a
ser-nos corpo
entra em nós algo de ti, dos gestos, das ideias,

das mãos com que, solene, o cozinhaste.

Sabê-lo
É saber que nós somos os outros,
que a química em ti,
por interposto goraz, agora
é também a que, por exemplo, nos comove.

E olha: deixa que os gulosos de sempre comam mais...

Tudo isto te é, creio, fa
miliar.

Vês? Um goraz nem sempre é um goraz:
Pode ser estrela, arco-íris ou país,
e pode mesmo ser mais eficaz.

É preciso, pois, merecer o teu sorriso,
devolver-te em pedaços de nós o que nos deste,

que a corrente dos corpos tem
sempre dois sentidos,
e tu ganhaste o mar, a música e a cor.

Por isso, só por isso, deve o goraz ser comido
com garfo e faca, com vinho
e com amor.



SIGAMOS O GORAZ (Primeira década do século XXI)

Quem diria que um goraz bem cozinhado

Durasse tantos anos ou tão poucos.

Fomos tolos e agora

Somos loucos?

O tempero ganhou em qualidade,

Parece o vinho de que canta a lenda.

Já lá vão vinte e três,

Sem emenda!

A arte é dom de quem lhe espeta a faca,

O peixe é rei de quem lhe mete o dente:

Cuidado com o prato

Que está quente...

Quem quiser seguir o cherne, faz favor,

Mas não lhe invejo a sorte. Sou capaz

De apostar no cavalo

Do goraz.

Em que assados o assado nos meteu

Só nós dois é que sabemos afinal.

Siga a marinha que ainda,

Por sinal,

Enverga farda de gala e coisa e tanto,

Que os anos pesam a quem só se atrasar

E a música e a neve

E o luar

Acompanham as caras com que rimos,

Apimentam iguarias inesperadas.

Ah goraz d’um carago,

Já marchavas!

Tudo isto é de um requinte absoluto,

De uma lei, mais que justificada, justa.

E às vezes, é verdade,

Também custa...

Isso que importa, se ao virar a esquina

Aparecem o rapaz e a menina?

E depois, surpresa das surpresas,

Para nossa inenarrável confusão,

O goraz ultrapassa

O camarão!

Porque, sabes, o camarão é simples:

Mais alho ou menos sal, frito ou grelhado,

Não encara o goraz,

Olha-o de lado...

Enquanto o peixe assado armadilha

Anos de culinária abandalhada,

Transforma em linhas garfos,

Abre a estrada,

Escroques croquetes, risonhos rissóis,

Pastéis palacianos, fios de ovos

Rebentam por ficarem

Como novos.

Mas dá-me vinho branco e aquelas coisas

Que ainda não me entraram no radar,

Vamos a ele, que é tempo

De explorar

Vinte e três anos e por isso apenas

Não me calava nem à lei da bala.

Mas quanto mais se escreve,

Mais se cala...

Devia assim mostrar a folha em branco,

P´ra te dar chances de interpretação.

Mas entretanto aprendi

A lição:

Há que ser sempre in finis positivo,

Há que ter sempre corda e ameaças,

Senão de que valiam

As cenaças?

Há quem invoque os deuses e os diabos,

Há quem aroma(n)tize à boticário.

Não farei nada disso,

P’lo contrário,

Quero uma data simbólica e real,

Quero um dia sem espinhas nem surpresa,

Além da que é forçoso

Pôr na mesa,

Com cuidado, que a porcelana é nova

E há muito campeonato p’ra jogar.

Por isso ainda podemos

Divagar

Devagar.

Refilar,

Regritar,

Penetrar

No lugar

Onde se diz, onde se vê, onde se faz,

“Com garfo e faca, com vinho e com amor”

O famoso goraz.


26 comentários:

Lola disse...

Alien,

Que memória extraordinária tu foste trazer:)))

A casa cheia dos gulosos do costume, os risos e a música inesquecível:)))

E o tempo que nós vamos ignorando, os mesmos olhos e o poema revisitado.

E, em tempo de memórias, um beijo grande da tua "amiga vestida de ternura"

Teresa Durães disse...

nunca pensei que um goraz desse tanto pra aescrever! Muito bem!

beijos

Lola disse...

Alien,

E obrigada pelas flores.

Beijos

nnannarella disse...

Caramba! Fiquei com olhos de goraz de tão esbugalhados!... Isto não é um simples poema, é uma ode, quase epopeia, se tivesse mais uns Cantos. Magnífica e sonorosa e suculenta. Não fosse a sombra da greve dos pescadores, este seria um momento de pura felicidade!:)
Vasi!

nnannarella disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
wind disse...

Parabéns duas vezes, uma pelo aniver~sário e outra pelos poemas que estão geniais:)
Beijos

Gi disse...

A 29 de Maio fazia anos a minha avó querida e a minha sobrinha mais novinha 5 anos. Também é um dia de celebração.

Já estou como a Wind. Parabéns duas vezes e pelso mesmos motivos


um beijinho

Alien8 disse...

Lola,

Obrigado por gostares, por te lembrares, pelo beijo...

E um beijo.

Alien8 disse...

Teresa,

Depende do goraz... e mais de quem o faz :))

Obrigado.

Beijos e até breve.

Alien8 disse...

Nnannarella,

Epopeia??? Ah ah ah ah ah! Sais-te com cada uma! :)

Na realidade, são apenas dois poemas, separados por alguns anitos...

Fico feliz por ters gostado (apesar da greve, pois...:)

Vasi!

Alien8 disse...

Wind,

Obrigado, amiga.

Um beijinho e até breve.

Alien8 disse...

Gi,

Obrigado. Como para ti também é uma data de celebração, deixo-te também os parabéns. A tua sobrinha mais nova tem 5 anos?

Um beijinho.

Marginal disse...

Alien, viesse eu mais cedo e ficaria com água na boca :)

Assim, depois de uma farta e bem acompanhada sardinhada, deixo eu tb os meus parabens à cozinheira de mão cheia e coração sucolento :) e um obrigada a ti por nos ofereceres tão bem descrito goraz!!!...e ao que parece:) 23 anos de vida! Porque um goraz não é e nunca será apenas um goraz :)

Beijo de bom domingo e de boa semana!

Marginal disse...

errata :(suculenta)



Opssss

Marginal disse...

errata da errata: (suculento)

opsss opssss

:-D

Alien8 disse...

Marginal,

Ena, ena, três comentários de uma assentada! :)

E quem serás tu, quem????

OK, não serei eu quem me descosa :))

Só agradeço o que escreveste, os parabéns e tudo o mais. E sim, eram 23 aninhos em comum ao tempo do segundo goraz...

Boa semana e um beijo!

e-ko disse...

que bom, um goraz... com flores e poemas, que requinte!

beijo

Alien8 disse...

Olá, e-ko!

Obrigado e até breve.
Um beijo.

Marginal disse...

Deixo aqui um café e um sorriso :)


à margem de tudo o mais :)

Alien8 disse...

Marginal,

E eu devolvo-te o sorriso e agradeço o café, que estava óptimo!

À "Margem de Certa Maneira" hehehe!

Beijos.

Chá da Barra disse...

Olá caro amigo Alien,
não encontrando um dos habituais posts sobre culinária deixo mesmo aqui o link para a Casa de Chá da Rita e sua irmã: O Chá da Barra em Oeiras (http://chadabarra.blogspot.com/)
Acredito que despertará muitos desejos com as doçuras lá descritas.
Abraço
Tiago

Alien8 disse...

Olá Tiago,

Muito obrigado pela visita e pelo link. Em breve lá irei!
Um abraço.

Graça Brites disse...

Alien,

Ainda que só cá pudesse voltar para o ano não deixaria de comentar esta lindíssima dedicatória. Primeiro, porque embora não a tenha comentado pude lê-la no dia em foi publicada e fiquei com ela na memória e depois, porque nunca tinha visto uma forma de comemorar este tipo de datas com um cardápio tão sumptuoso e tão original.

Muitos parabéns a ambos!

Alien8 disse...

Graça B.,

Só me ocorre dizer-te obrigado! :)

bettips disse...

Que lindíssimo! Ah...os "gémeos" que tão imaginativos são... até um simples peixe se transforma numa passarola voadora! Achei ternura à solta e tudo o que é de comemorar me adoça a alma.
Bjs de Parabéns, mesmo só "adivinhando". Mas a mim apraz-me a felicidade de amigos...

Alien8 disse...

Bettips,

"Gémeos" que, por acaso, são "Peixes" :)))

Adivinhaste muito bem, e agradeço, agradecemos, os teus parabéns e as tuas bem felizes palavras.

Boa semana!