Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

6 de out. de 2007

Um americano na Encanada (relato curto)

Conheci o Peter na Califórnia, tinha eu 21 anos e ele alguns mais. Logo após as primeiras conversas, descobrimos, para além de uma certa empatia, interesses comuns de ordem ideológica e cultural. O Peter escrevia, eu tentava escrever. Ele estava mais voltado para os contos, eu para a poesia.

Quando voltei a Portugal, passámos a corresponder-nos com alguma regularidade. De vez em quando ele mandava-me um conto novo, laboriosamente dactilografado. Ia-me falando da sua vida. Homem dos sete ofícios, tinha já sido motorista de táxi em S. Francisco, carpinteiro e cozinheiro. Mas, acima de tudo, escrevia.

Passaram-se alguns anos. Um dia recebi uma carta do Peter, em que me anunciava uma próxima viagem à Europa (tinha uma irmã a viver na Dinamarca). Obviamente, queria incluir Portugal no roteiro. Ofereci-lhe a minha casa, que por essa altura era no Porto.

E lá chegou o Peter, que o meu grupo de amigos mais chegados rapidamente iniciou nas noitadas portuenses, nos vinhos e petiscos, nos mistérios e na beleza da cidade. No trânsito também, o que deixava o americano com o credo na boca. Podia ter sido motorista de táxi em S. Francisco, mas nunca tinha visto conduzir como no Porto!

Um dia alguém aventou ser indispensável uma excursão a Ponte de Lima,



para que o Peter ficasse a conhecer o arroz de sarrabulho e o verde local. Aprovámos. O Peter era um amigo e um convidado de honra. Tinha que ser levado a Ponte de Lima, ao arroz de sarrabulho e ao verdinho.

Foi num sábado à noite que nos reunimos para combinar os pormenores do passeio, aprazado para o dia seguinte, a hora não demasiado matutina. Decididos a hora e o local de encontro para a partida (ainda seguiriam 3 ou 4 carros), o resto do serão foi dedicado à cavaqueira, devidamente regada com uns uísques. Chegado a este ponto, tenho que esclarecer que o meu amigo americano bebia bastante bem. E, nessa noite, estava particularmente sequioso. Assim a atirar para a esponja, para dizer a verdade. De modo que, com a ajuda de todos, o uísque desapareceu completamente da garrafeira dos amigos em casa de quem nos tínhamos reunido. Mas o Peter queria mais. Entrou então pelo vinho do Porto, pelos licores e pelo mais que havia, e que foi bebendo cerimoniosamente enquanto a conversa continuava.

Como é lógico, o serão prolongou-se muito para além do esperado, e foi com poucas horas de sono que na manhã seguinte saímos a caminho de Ponte de Lima para almoçarmos na Encanada, o restaurante escolhido pela excelência do arroz de sarrabulho




e pela qualidade de alguns verdes. Ninguém ficou desapontado. Comemos e bebemos à melhor maneira nortenha, e decidimos prosseguir o passeio rumo ainda mais a Norte, para espairecer e ajudar à digestão com uns cafezinhos e uns digestivos que íamos tomando pelo caminho que nos levou, com paragens estratégicas para apreciar a paisagem, até Valença. Uma excursão memorável, garanto-vos, que só terminaria lá pelas 7 da tarde-quase-noite, que foi mais ou menos a hora a que cheguei a casa.

Atingido este ponto do relato, e sendo notório que alguns estrangeiros têm por vezes uma certa dificuldade em apreciar os nossos petiscos, haverá talvez quem esteja interessado em saber o que achou o Peter do arroz de sarrabulho. Pois, isso também eu queria, mas não tive sorte nenhuma. Nem nessa altura, nem nunca: Quando entrei em casa, às tais 7 da tarde-quase-noite, ainda o Peter dormia a bom dormir, e mesmo a essa hora foi impossível arrancá-lo da cama.

De manhã, bem tínhamos tentado. Nem bulia. Uma autêntica rocha. De modo que só nos restou desistir do americano, que não da Encanada. E assim continuou o Peter a ignorar as delícias do arroz de sarrabulho. O verde sempre acabou por conhecer, mas isso seria outra história.

26 comentários:

wind disse...

Gargalhadas, com uma "buba" dessas ele não ia a lado nenhum.lololol.
gosto de ler estas tuas histórias, são engraçadas:)
Beijos

hora tardia disse...

"hist�ria com receita � moda do A."

ou
de como a vida nos receita receitas para n�o esquecermos os amigos.


n�o de S. Francisco mas daqui...:)
um abra�o. regado com o melhor dos sorrisos.

________________porque saber "dizer" da vida dizendo paisagens "arom�ticas" assim, n�o � para todos.
s� para quem "viveu". Mesmo.


bom s�bado!


_________________ao sol.

Gi disse...

Temos que tentar sempre ver as coisas pela positiva. Ele não conheceu o arroz mas o almoço também saíu mais barato :) Será que a garrafeira do restaurante estava habilitado para as securas do Peter? :). Já sei que é outra história mas já agra, podes dizer-nos se o Peter continuou a sua aventura na escrita e se , se fez gente neste campo? Curiosidade só :)

beijinhos



(Esse arroz é das poucas coisas que não como, juntamente comm maõzinhhas de vaca , pezinhos de coentrada, orelha, focinheira, rabo de boi ... ou seja, não gosto de extremidades :) )

PintoRibeiro disse...

Bom, bom Alien.
Um abraço.

Lola disse...

Alien

Lembro-me do Peter.
E da noite antes do sarrabulho...afinal foi a minha garrafeira que ele esgotou!

Era ( penso que ainda será) uma boa alma, " adorable" como ele dizia.

Beijos

Alien8 disse...

Wind,

Não ia nem foi :)))
Acredita, a coisa teve muito mais piada ao vivo. E eu nem a pintei, nem nada - é mesmo um relato abreviado.
Beijos.

Alien8 disse...

Hora Tardia,

Nem os de agora, nem os de S. Francisco. Estarão sempre todos cá. Presentes.

Viver, viver... é destas coisitas que se faz a vida, realmente. Destas e de outras.

Obrigado, e retribuo o teu abraço (bem regado!).

Alien8 disse...

Gi,

É um ponto de vista :) Quanto à garrafeira, era excelente e graaaande!

Em relação à tua curiosidade: Sim, continuou a escrever. Não se tornou "conhecido", mas não considero isso necessário para se ser ser "gente" nesse campo, por isso a resposta é "sim".

Também não sou grande apreciador das miudezas que referes, mas do arroz de sarrabulho sou :) Com tripa enfarinhada e tudo :)

Beijinhos.

Alien8 disse...

Pinto Ribeiro,

De regresso? Óptimo!

Um abraço.

Alien8 disse...

Lola,

Ai foi? Não me lembrava desse pormenor :)))))

Assim como pareces não te lembrar do dia do almoço hehehe.

Uma boa pessoa, concordo. Sem as patéticas aspas que agora por aí põem. Uma pessoa inteligente, culta, afável, bon vivant e por aí adiante. Um bom amigo...

Um beijinho à dona da garrafeira :)

Mocho Falante disse...

mas que grande festança essa hein?

assim mesmo é que é ser um bom anfitrião, eu também faço questão de mostrar o que temos de melhor aos amigos que vivem noutras paragens...

abraços

Alien8 disse...

Mocho Falante,

Mesmo que eles não vejam nada? :)

Um abraço, amigo!

.....e Capricórnia sou eu!!! disse...

Grande amigo Alien8,

mas que grande farra!!!

Vim deixar bessos a ti e ao resto da familia!
:)

Alien8 disse...

Capricórnia,

Se foi, mesmo sem o convidado :)

Beijos de todos para ti.

nnannarella disse...

Estou a dizer-lhe adeus, à constipação, pois já me chegou água à boca só de ler da tua animada reinação.:)
Ponte de Lima e o Encanada parecem-me um belo destino de Outono...
Belo momento este, nascido de horas gozadas... Bem hajam: tu, o Peter e a garrafeira da Lola!
Beijinhos. Alimonados.

Alien8 disse...

Nnannarella,

Um imenso adeus. À constipação.

Concordo, como destino de Outono há muito pior que Ponte de LIma e etc...

Bem hajas tu pela paciência de ler :)

Beijos.

hora tardia disse...

o b r i g a d a
_________________
___________________
_____________________________.





(mesmo)


beijos.

Gi disse...

Passa pel meu blogue s.f.f., último post de hoje (11.10) tenho uma encomenda para levantares :)


beijinhos

Mocho Falante disse...

ora viva

tens uma prenda lá no poiso

abração

Alien8 disse...

Hora Tardia,


Não tens que agradecer. Mesmo :)

Beijos.

Alien8 disse...

Gi,

Muito, muito obrigado!

Por princípio, não atribuo prémios. Todos os blogs que visito e comento os merecem.

O prémio que me deste é teu também :)
E o teu blog é uma maravilha.

Um beijo.

Alien8 disse...

Amigo Mocho Falante,

Muito obrigado! Tal como disse acima, em resposta à Gi, não atribuo prémios, por princípio. Entendo que todos os blogs que visito e comento os merecem. O teu é um deles. Também neste caso, o prémio é de quem o dá, mais do que de quem o recebe :)

Um grande abraço!

Alien David Sousa disse...

LOL Muito bom maninho, o teu amigo Peter é daquelas esponjas que absovem mas que depois se afogam na banheira e já não vêm ao de cima.

Adorei um promenor:

" nunca tinha visto conduzir como no Porto!" lol

Beijinhos alienígenas

Alien8 disse...

Mana,

Mais ou menos, mais ou menos :)))

Sabes, o tal pormenor, enfim, eu conduzi por lá uma nave durante uns anitos, e nem te digo nada...

Tenho uma amiga que, certa noite, parou o carro a meio da Rotunda da Boavista e saíu a chorar, porque não conseguia saír do "carrossel" nem à lei da bala lolololol! Juro que isto é verdade!

Beijinhos.

Teresa Durães disse...

excelente!!!!! Lindo!!! Claro que o Peter foi um totó eheheh mas a raça da Gallecia e Lusitana fez devido juz!

Parabéns, adorei!!!

(tarde mas adorei!!!)

Alien8 disse...

Teresa,

Antes tarde que nunca :)
Terias adorado bem mais o propriamente dito arroz... se não fosses veg, claro :)))

Um beijo.