Aliencake

Foi numa tarde de sábado, de encontros, reencontros e desencontros, de estreia literária e café, tudo prolongado em noite, jantar e mais café, ficando no entanto curto o tempo. De súbito, aparece-me pela frente um bolo com a minha cara. Um bolo com rosto de Alien. Olhei-o uma e outra vez, e só não me belisquei porque dói um bocado, convenhamos. Mesmo a aliens. As pessoas cantavam os parabéns e batiam palmas, eu ouvia e agradecia, mas mal tirava os olhos do bolo. Fizeram-me pegar nele com uma mão, perante a apreensão de alguns circunstantes, e conduzi-lo, ou deixar que me conduzisse, à mesa improvisada. Vivendo desde sempre em terrível dúvida sobre a minha origem e condição, houve um instante luminoso em que tudo se revelou. "Sou um bolo, afinal sou um bolo!" - exclamei para mim mesmo, entre alguma perplexidade e o alívio de uma certeza há muito tempo aguardada. Foi sol de pouca dura. Lá tive que partir o bolo. Lá tive que me cortar à faca em fatias que rapidamente desapareceram. Ao que parece, estava bom, eu. O facto é que, apesar disso, ainda estou vivo. Não serei, então, um bolo? Serei apenas a recordação dele? Felizmente, a fotógrafa estava lá. Serei assim talvez a fotografia de um bolo. Há piores destinos. Há piores fins de tarde-noite de sábados de lançamentos de livros, encontros, reencontros, desencontros, jantares, cafés, aniversários e ainda mais. Muito, muito piores, garanto-vos.

16 de jul. de 2010

Amanhecer

Amanhecer aqui é uma incongruência.
Fecha, portanto, os olhos e não digas nada
Enquanto a noite for esta, silenciosa e tensa,
Com vagas luzes de automóveis ao longe, na estrada.
Tu, que te pensas homem e como os deuses falhas,
Ergueste a dimensão nocturna, gesto a gesto,
Enquanto se fechavam paredes de navalhas
Sobre o corpo que habitas e a sombra do resto.
Oblíqua e ténue sombra, móvel, plástica,
Pintada a ocidente dos mares inventados,
Onde a madrugada é uma árvore fantástica,
Mais ou menos perdida entre espelhos quebrados.


24 comentários:

Licínia Quitério disse...

Muito bom. Um amanhecer entre espelhos quebrados. Sem nunca perderes o ritmo. Poesia limpa e límpida. Cada vez melhor, Mário Poeta!

PS - sem entrar em comparações inadequadas, acho que andamos dentro do mesmo tema. O meu último chama-se Enlouquecer, muito menos conseguido, mas andam pela mesma cidade perdida.

Alien8 disse...

Venha ele, Licínia! Se calhar não serão inadequadas:)
Grato pela visita e pelo comentário.

wind disse...

Fabuloso e muito forte!:)
Beijos

Rui disse...

foi a primeira vez que meti o dente num alien. estava docinho.

Licínia Quitério disse...

O meu é o último postado no Sítio do Poema. Até tenho medo da tua reacção...

© Maria Manuel disse...

da eleição da noite, "silenciosa e tensa" (isto diz-me muito!), lugar de fuga ou refúgio das "paredes de navalhas" e dos "espelhos quebrados" (como diz a Vanda, imagens intensas das realidades humanas), ou de ilusão de "mares inventados" e árvores fantásticas com vagas luzes ao fundo, como se de um sonho -

Lola disse...

Citando o Poeta:

"No amanhecer de ti cabem
todas as janelas
porque és a dimensão
onde as viagens são possíveis..."

Beijos grandes

Justine disse...

Que belíssimo canto nocturno, que forte tapeçaria de palavras duras e certeiras.A poesia é sempre uma arma, e esta tua é bem afiada!
Parabéns, Alien:))

Alien8 disse...

Licínia,

Claro que já lá fui constatar :)
Agradeço as tuas palavras, lá e cá :)

Alien8 disse...

Wind,

Obrigado e beijinhos. Eu já lá passo :)

Alien8 disse...

Rui,

Docinho seria a última coisa que eu diria deste escrito, mas pronto, tu lá sabes. O bolo, esse era doce, realmente :)

Alien8 disse...

Maria Manuel,

É óbvio que compreendes o "código". E isso não me surpreende, depois do que já li escrito por ti. Cada um tem direito à sua leitura, naturalmente. Acontece que há quem faça precisamente a minha (ou uma das minhas, que haverá outras menos confessáveis...). É também o caso da Licínia e da Vanda. E da Lola, mas essa não vale :)

Alien8 disse...

Lola,

Esse amanhecer é outro, bem sabes :))
Beijinho e obrigado por citares o poeta, seja ele quem for :)

Alien8 disse...

Justine,

Também tu me percebes. Pudera!
"À l'École de la Poésie on n'apprend pas. ON SE BAT!".

Beijos.

Alien David Sousa disse...

CLAP; CLAP; CLAP!

Muito bom maninho. Não creio que este texto seja apropriado para comentários...vale sim, saborar cada palavra.
kisses alienígenas

Maria disse...

Muito bom! Mesmo que a madrugada seja uma árvore perdida, nem importa onde...

Lizzie disse...

Alien:

que as incongruências levem a que o silêncio quebre os espelhos, é só uma questão de tempo. Na maior parte das vezes é só uma questão de tempo.

Só os deuses são imunes às navalhas que apunhálam a coerência entre o corpo e a sombra.

A sombra é mais verdadeira que o corpo. Pelas sombras se adivilham os fantasmas que habitam o corpo. A sombra conta a verdadeira história da alma. Veêm-se melhor os gestos, os movimentos e o olhar não se distrai com o que o corpo oferece. As sombras são donas orgulhosas de todos os segredos.

Por isto tudo, crio-te o cenário e no cenário.Pinto-te num palco. Imagino-te a vaguear no meio das sombras, autónomas no foco de luz nocturna.
Ninguém te mandou falar em "vagas luzes de automóveis ao longe, na estrada.":)), cá para mim, e se calhar é disparate completo, o verso chave.

Mas é assim, quando "traduzo" e transporto para a minha sombra é porque gosto.:)

E boas viagens na semana, de preferência, com os espelhos inteiros porque o mar, esse, inventado ou não, tem sempre uma sombra em cada onda.

Abraço x 2

Alien8 disse...

Mana DS,

Obrigado pelo aplauso :)))

Beijinhos alienígenas.

Alien8 disse...

Maria,

Perdida para que se encontre, um pouco à maneira da Florbela? :)

Obrigado!

Alien8 disse...

Lizzie,

Essa tua teima de me pores num palco ainda vai dar mau resultado, ai vai sim, apesar de já não dizeres "a dançar" :)

Quanto ao verso-chave, pois se aquele o é para ti, então é porque o é. Certo?

Assim se constroem jogos de luz e sombra. O que é a vida, afinal?

Obrigado pelo comentário, um abraço.

Lizzie disse...

Alien:

Certíssimo, que é uma das virtudes da arte contemporãnea o cada um escolher o verso que lhe dá na realíssima gana.

E não disse que ias dançar porque aqui podes ficar quieto! Fica pois descansado quanto a esse particular:))
Só vou é botar alguém a dançar à tua volta.
E vai ensaiando a tua expressão facial que sou muito esquisita com isso.

Em relação a luzes e sombras, hoje estou baralhada porque um carro veio desencabestado e bateu no meu e eu bati com a cabeça, porque não estava à espera deste enredo,coño, e senti os pensamentos a chocalhar ainda mais do que é costume e vi sombras em todo o lado,ai tantas...mas como estou a escrever aqui para desejar bom fim de semana, presumo que ainda não morri e que a cabeça continua teimosamente agarrada ao corpo embora, de vez em quando, me apetecesse que ela fosse dar uma volta:))
Quem não tem tais apetites?

Abraço!

ps: qualquer dia conto-te porque é o verso chave.

Otávio M. Silva disse...

Ótimo Texto, Parabéns.

dá uma passada no meu blog também.
http://otaviomsilva.blogspot.com/

Forte Abraço

Alien8 disse...

Lizzie,

Expressão facial, ok. Quieto, se for capaz. Mas de que me queixo? Estou no palco, e nenhum carro me bateu...

Espero bem que a cabeça esteja no sítio :)

E fico à espera do porquê do verso-chave!

Bom fim de semana e um abraço dos dois.

Alien8 disse...

Otavio,

Obrigado pela visita e pelo comentário.